sábado, 26 de novembro de 2011

Pezinho - Final

O local escolhido para a comemoração da vitória de Dust foi o Bar do Jamelão, uma “taberna” mal acabada que ficava perto da faculdade de veterinária, ao lado de uma borracharia. Aquela era uma das noites mais felizes da vida daquela turma. Todos estavam sorridentes, falando alto e relembrando os momentos finais da queda do grande vilão da universidade. Alguns especulavam que Mum-Rá finalmente se aposentaria, renovando as esperanças de vários alunos em conseguir o diploma. Dust era abraçado por todos. Alguns, já meio embriagados, se ajoelhavam aos seus pés.

Em minha mesa, estavam Dust, Cara de Kombi e Ivana, a prima de Minduim que era conhecida nos corredores como Savana. Ivana era provavelmente a garota mais bonita de toda universidade e tinha um perfil bastante peculiar. Cursava física, jogava dominó e era muito simpática e comunicativa, além de ser extremamente inteligente. Características raras unidas em uma garota de tão exuberante beleza. O apelido atribuído a Ivana, segundo contavam, foi dado por conta da imensa aparência física que ela supostamente possui com uma atriz pornô americana, conhecida como Savana.

Ivana ficou sabendo do apelido, mas nunca esboçou qualquer preocupação quanto a isso. Ela chegou inclusive a dizer, em uma mesa de dominó, que teria assistido a um filme da Savana apenas para comprovar se o apelido era pertinente: “Parece mesmo. Mas ela tem o corpo muito mais bonito, claro!”, disse.

Outra coisa interessante sobre a Ivana é que ela parecia ser a única criatura do sexo feminino que demonstrava interesse pelo Dust. Sempre que o via, ia correndo falar com ele. Passavam horas conversando no pátio e ela ficava nitidamente maravilhada, o ouvindo falar. Ivana conversava olhando não para os olhos do interlocutor, mas para a boca. Todos achavam isso muito sexy.

No entanto, ninguém desconfiava que Ivana pudesse estar interessada no Dust. Primeiro que ela tinha um namoradinho, e segundo, que todos achavam Dust um cara detestável (até aquele dia, pelo visto). Seu comportamento era muito esquisito. Ele preferia ficar em algum canto do pátio lendo um livro do que participar das rodas de conversa. Quando estava em um grupo, praticamente não abria a boca e se mandava o mais rápido possível. Com poucas pessoas ele se dedicava a dialogar. E com Ivana, seus olhos brilhavam. Assim como Mum-Rá, Dust parecia gostar da fruta.

Quando Ivana se levantou para ir ao banheiro, Dust começou com a chatice:

- Galera, vou tomar a saideira e vou adiantar!
- Aaahhhh, Dust! Peraí! Esta é sua festa, rapaz! Você acabou de chegar!
- Ah, Marcão! Esse povo não me deixa em paz! Toda hora vem um bêbado aqui com as mesmas piadinhas! Vocês não querem pelo menos mudar de bar? Tou indo ao banheiro...

Dust era anti-social mesmo. Sempre desagradável quando a situação envolvia relacionamento interpessoal. Competindo com ele, em termos de ser "sem-noção", estava Cara de Kombi. E a disputa era acirrada:

- Marcão, vou pegar esta mulher hoje!
- Vai nada, Cara de Kombi! Ivana tem namorado!
- Não tem mais não! Minduim me disse que esta semana ela ficou solteira!
- Então tente, mas ela não parece estar dando mole pra você. Só fica de papo com o Dust!
- Que nada, Marcão! Dust fica insistindo nestes papos de teoria da relatividade, mecânica quântica e velocidade da luz! Essa ladainha aí não dá em nada!
- Mas ela parece bem interessa... Ela tá vindo aí!

Então tive, mais uma vez, a desconfortável experiência de presenciar Cara de Kombi levar um fora descomunal...

- Ivana, tá a fim de ir ao show do Asa amanhã?
- Não, Cara de Kombi. Não curto axé não.
- Mas como não curte axé? Você não é baiana não?
- Sim, mas isso nunca foi o suficiente pra me fazer gostar de axé, infelizmente.
- Você curte o quê?
- Blues e Jazz. Já cantei em alguns conjuntos. Inclusive, eu e Dust estamos pensando em formar uma banda!
- Ah! Você é cantora! E Dust achando que vai te conquistar com essas “conversinhas de cientista”...
- Na verdade, Cara de Kombi, Dust ESTÁ me conquistando com essas “conversinhas de cientista”.

E, novamente, Cara de Kombi teve sua autoestima arremessada ao abismo. Calou-se, encheu o copo de cerveja, recostou-se confortavelmente naquela cadeira desconfortável e fingiu estar tudo bem. Agora eu tinha certeza de que aquela noite acabaria mal. Quando Dust estava voltando do banheiro, meu celular tocou:

- Marcão! Onde vocês estão? Eu tô no Sergipe com Arlete. Não quer vir tomar uma cerva?
- Boa pedida! Vou falar com o pessoal aqui!

Dust e Ivana toparam. Cara de Kombi, como era de se esperar, disse que ficaria por ali mesmo. Saímos de lá e fomos para o Sergipe. Foi um encontro bastante agradável e com algumas surpresas. Pezinho não tomou uma dose de álcool e Dust bebeu até ficar falando embolado, após ter dado uns amassos na Ivana. Aquela era a noite do ranzinza, a noite na qual o “lobo da estepe” uivaria mais alto. Além de derrotar o demônio, ganhou dezenas de seguidores e ainda "salvou" a princesa.

Fechamos a conta lá pelas 2 da manhã, quando o bar estava fechando. Sugeri a saideira no Espetinho Angorá. Pra minha surpresa, Pezinho não aceitou o convite, pois Arlete já estava querendo ir embora. Ivana também tinha um compromisso cedo, no dia seguinte. Então, fomos apenas eu e Dust.

- Olha aí o Mussum! Vai de quê, Dust?
- Um de queijo coalho e um de gato mesmo. Traz um chope também!
- O mesmo pra mim, Mussum!

Estava preocupado com Dust. Nunca tinha visto o cara bêbado. Ele era do tipo durão, que poderia beber uma noite inteira e jogar futebol na manhã seguinte, mas, naquela noite, já estava “pra lá de Bagdá”.

- Ô Dust, você ainda vai beber?
- Claro. Eu estou ótimo!
- Não parece não. Já está falando meio embolado e seus olhos já estão bem vermelhos.
- Relaxe, Marcão. Eu tenho a visão além do alcance... hehehe
- E o lance com a Ivana? Acha que dá futuro?
- Marcão, eu vou te confessar uma coisa: Sempre fui louco pela Ivana. Mas não achava que ela me daria uma chance. Depois que conheci aquele namoradinho dela, playboyzinho e bobão, perdi as esperanças. Fiquei tão decepcionado com ela, que pensei até em ignorá-la como amiga. Uma mulher tão inteligente e graciosa, jogando fora seu tempo com um idiota acéfalo como aquele.

- Ah Dust, você sabe que a mulherada não escolhe muito bem...
- Por conta desta frustração, acabei escrevendo uma teoria genial.
- Mais uma? Sobre o quê?
- Sobre satisfação em relacionamentos afetivos.
- Conta aí, então!
- Marcão, é um assunto um pouco extenso pra...
- AH DUST, pode falar! Agora eu fiquei curioso...

Dust respirou fundo, colocou no rosto aquela expressão de indiferença e, alisando a barba, começou:

- Quando estamos formando nossa personalidade, nos deparamos com muitos sentimentos, influências e novas experiências de vida. Diante de tudo isso, utilizamos nosso discernimento e percepção para criar, utilizando diversos níveis de consciência, três conjuntos imaginários de elementos afetivos. Vou falar dos dois primeiros, depois explico o último. Você tem uma caneta aí?

- Ô MUSSUM!!! Arranja uma caneta aí!
- NÃO TEM NÃO, MARCÃO!
- DEIXA DE PREGUIÇA, VELHO! CONSEGUE AÍ!
- PORRA, VOCÊS SÓ ME DÃO TRABALHO! TODO MUndo chega aqui come, bebe e vai embora e vocês nãããão... Têm que ficar pedindo o que não tem, pedindo caneta, pedindo tudo! Só podiam ser amigos do Pezinho que é outro folgado...
- Continua, Dust!
- O primeiro é o de “Necessidades Afetivas”, “que é o que contém tudo aquilo que desejamos, tudo aquilo que nos faz bem e que acreditamos precisar para atingir, em um relacionamento afetivo, a plena felicidade. Este conjunto é formado, principalmente, a partir dos princípios, comportamentos e convicções que vamos considerando valiosos, corretos e adequados, ao longo da vida. Costumo apelidar este conjunto de “demanda”...
- TAÍ A CANETA, MARCÃO!
- E o chope? E os espetinhos? Nem papel você trouxe, rapaz!
- PORRA! EU TOU TRABALHANDO, RAPAZ! NÃO TÁ VENDO QUANTA GENTE EU TOU ATENDENDO?
- Ô Mussum, pega lá, velho! Já tem um tempão que a gente pediu...
- TÁ, TÁ, TÁ! VOU PEGÁ! ANO QUE VEM EU SAIO DESSE SIRVIÇO E VÔ LÁ PRA CONCEIÇÃO CUIDAR DA HORTA DE MINHA VELHA PORQUE Não dá pra ficar aqui se acabando de trabalhar e neguinho só reclamando e enchendo o saco porque uma porra de um espetinho de gato demora de chegar...

Enquanto Mussum se afastava resmungando, Dust já tinha começado a rabiscar em um guardanapo o seu modelo. Impressionante como o cara conseguia desenhar tão bem, após ter tomado um balde de álcool:



- Marcão, eu tô usando uma simplificação aqui. Elaborei um modelo matemático mais complexo, mas não vou parar agora pra explicar, pois você já tá meio sonolento...
- Tudo bem Dust. O que significam esses números aí?
- Bom, em resumo é o seguinte: O conjunto “demanda” possui essa camada mais externa, onde estão os elementos de valor 1. O núcleo das necessidades possui elementos de valor 3, ou seja, são os mais relevantes e intimamente importantes para o indivíduo. Este, ao longo da vida, pode até acreditar que outros elementos presentes fora do núcleo sejam os principais, mas quando, em algum momento, receber aqueles que estão no núcleo, será arrebatado por uma sensação de prazer e satisfação tão grande, que rapidamente perceberá que aqueles sim são os mais relevan...
- E QUANDO o cara fica satisfeito?
- O indivíduo está plenamente satisfeito em seu relacionamento quando encontra alguém que possua em seu conjunto “oferta” (que eu vou explicar daqui a pouco) os elementos do núcleo do conjunto “demanda”. Mas é necessário que a ofertante doe efetivamente tais elementos, entendeu?
- Então quer dizer que o “ofertante” tem que entregar os elementos de valor 3 para o “demandante”. E se faltar algum elemento 3, não dá certo de jeito nenhum?
- Pode dar. Mas para suprir um elemento de valor 3, é necessário que o ofertante entregue 3 elementos valorados como 1 no conjunto do demandante. É mais ou menos uma função matemática. Você consegue perceber isso, né?
- Sim, então se um ofertante só possuir somente características de valor 1 para um demandante, ainda assim é possível haver realização...
- Isso mesmo! Por exemplo: Uma mulher adora homens com corpo malhado, estilo esportista, saradão. Todos os namorados dela foram assim. Ou seja, o corpo do homem pra ela é um elemento de valor 3 no conjunto demanda. Um gordinho não poderia doar este elemento (a não ser que faça um baita tratamento estético), mas pode doar 3 elementos psicológicos de valor 1 que substituirão o físico de valor 3, como por exemplo, ele pode ser carinhoso, inteligente e ter um bom emprego, características presentes no conjunto demanda da garota com valor 1. Logo, 3 elementos de valor 1 substituem 1 elemento de valor 3.
- Ok, Dust. Mas e o conjunto “oferta”, tem esses valores também?
- Sim. Porém, o conjunto “oferta” é um pouco mais complicado que o “demanda”. E é normalmente o que gera os maiores problemas nos relacionamentos, porque o “ofertante” acaba tendo que ter sua oferta aceita para aumentar a satisfação do relacionamento. Ou seja, tanto o que você dá, como o que recebe, deve ser valorizado pelo companheiro.
- Dust, agora eu não entendi...
- Imaginei, Marcão. Então, vou desenhar. Pô, cadê nossos espetinhos?
- Mussum tá chegando, aí atrás de você...
- MARCÃO, O CHOPE TÁ GELADO, MAS O ESPETINHO VEIO FRIO. A CULPA NÃO É MINHA. O GALEGO TIROU LÁ DA CHAPA E BOTOU NO BALCÃO, MAS NUM ME AVISÔ QUE ERA DOS MEUS PEDIDO.

A gente quase sempre fica com raiva do Mussum, mas o cara é boa gente. Sofrido que só. E honesto. Já foi limpador de fossa, auxiliar de pedreiro, cortador de cana, camelô e outras funções bastante nocivas à saúde. Uma delas foi a de operador de britadeira, o que tirou boa parte de sua audição. O coitado mal ouvia a própria voz, por isso gritava tanto. Além disso, sempre suspeitamos que ele não bate bem da cabeça, pois está sempre balbuciando alguma coisa, falando sozinho e nunca consegue atender aos pedidos direito. Isso é o que faz muitos turistas reclamarem do atendimento dos bares de Salvador. Para pagar o mínimo possível, os empresários contratam pessoas como o Mussum, incapazes de fazer um trabalho bem feito. Por outro lado, se os patrões não dessem a oportunidade de pessoas como o Mussum fazerem algo mal feito, o que elas fariam?

- Tá bom, Mussum. Valeu! E aí, Dust? outro desenho?



- Sim. Este é o conjunto “oferta”. Seus elementos são todas aquelas características do indivíduo que afetam seu companheiro ou companheira. Por exemplo, ser inteligente, compreensivo, carinhoso, bonito e por aí vai.
- Por que os elementos agora estão misturados?
- Pelo fato de as pessoas buscarem, geralmente, oferecer um conjunto predeterminado de elementos que não se baseia no julgamento individual do que é bom, importante e desejável. Normalmente, este conjunto é formado pelos elementos que são socialmente relevantes, por aquilo que os grandes atores político-econômicos ditam como sendo o que é bom. Por isso este núcleo é enfraquecido. Ao invés de oferecer aos outros aquilo que temos de melhor, insistimos em oferecer o que o mundo diz que é melhor. E, no conjunto de características que o mundo define como sendo as mais desejáveis, estão aquelas que são mais difíceis para a maioria das pessoas obterem. .. Marcão, eu não vou comer essa porcaria aí não. Vá em frente!
- Nem eu. Deixa aí. Eu não entendi direito essa parte do núcleo do conjunto. Você pode expli...
- MARCÃO, sua capacidade cognitiva anda meio “down”. Minha explicação foi clara, mas vou te dar um exemplo pra facilitar sua vida. Olha aí o caso de Pezinho e da Arle...
- MAS logo o Pezinho? Não tem um exemplo melhor?
- Mas o Pezinho é um ótimo exemplo, Marcão. Ele está entrando no que chamo de “realinhamento positivo de foco”, o que gera a “valorização marginal da oferta”, ou seja, os elementos que ele está oferecendo estão sendo, agora, os de maior valor, e não os que estão presentes no núcleo do seu conjunto “ofer...
- PERAÍ, Dust! Você acha que Pezinho tá mudando mesmo?
- Não é isso, Marcão! Você não entendeu minha teoria, né?
- Você acredita que Pezinho mudou mesmo?
- Cara, tá difícil conversar contigo hoje. Estamos contextualizando situações no âmbito de um modelo. Não me interessa essa ladainha de “fulano mudou ou não mudou”. Preste atenção e não me interrompa que você vai entender.
- Tá bom, Dust! Foi mal! É que já tomei muita cerve...
- O PEZINHO sempre ofereceu às mulheres apenas elementos do seu núcleo. Ele sempre acreditou que o que deve oferecer é beleza física, contas pagas em bares, restaurantes e motéis caros, carro novo, estilo de vida boêmio, postura de macho dominador e valentão, dentre outras. Digamos que ele oferecia estes elementos daqui:



- Ok, Dust!
- Por conta disso, ele sempre atraiu e se envolveu com mulheres que possuíam tais elementos no núcleo dos seus conjuntos “demanda”. São mulheres como aquelas que ele sempre nos apresentou, de baixa estirpe e categoria, interesseiras e desprovidas de inteligência, típicas “piriguetes”. Era isso o que acontecia:



- Sim, Dust! Você soube daquela que roubou a carteira dele naquele dia do...
- COMO você pode perceber, a piriguete tinha seu núcleo de demanda atendido, mas o Pezinho, mesmo assim, nunca ficava plenamente satisfeito, pois a sua oferta, apesar de aceita, era composta de vários elementos de baixo valor. Foi aí que ele encontrou Arlete em seu caminho. O conjunto “demanda” da Arlete possui em seu núcleo elementos que, apesar de estarem presentes no conjunto “oferta” do Pezinho, este não os oferecia. Possivelmente, tais elementos não eram integrantes do núcleo do seu conjunto “oferta”. Então, como o que ele oferecia às outras não funcionou com Arlete, Pezinho, intrigado, passou a oferecer outros elementos do seu conjunto “oferta”. Inclusive, elementos que não integram o seu núcleo. Apelidei este fenômeno de “Método das Tentativas de Oferta”. E sabe o que aconteceu? Preste atenção:



- Entendeu, Marcão? A satisfação geral do relacionamento alcançou o ápice, pois os elementos mais valorados do conjunto “oferta” de um, encontraram os elementos mais valorados do conjunto “demanda” do outro. Neste momento, o relacionamento encontra-se no que chamo de “Estado de Equilíbrio Positivo”.
- Mas você acha que Pezinho está sendo sincero mesmo, Dust?
- Claro que existem também as ofertas virtuais, que ocorrem quando uma pessoa oferece algum elemento que não está em seu conjunto “oferta”. Mas uma das leis de minha teoria afirma que um elemento virtual tem duração limitada e não se torna real, em hipótese alguma. Logo, o elemento virtual irá gerar frustração e decepção da parte enganada, em um futuro próximo. A verdade liberta.
- Ah Dust. Então eu acho que o Pezinho está usando elementos virtuais pra iludir a Arlete...
- Eu tenho certeza que não. Muito pelo contrário. Pezinho agora está usando os elementos de maior valor do seu conjunto “oferta”, como eu te mostrei. É que, antes, ele vinha usando o seu núcleo, que, como sabemos, não era lá muito bem formado...
- Como é que você sabe disso?
- É muito simples. Você sabe que Pezinho é bondoso, fiel e compreensivo com os amigos dele. Ele faria de tudo pra nos ajudar em um momento de necessidade. Além disso, sempre jogou limpo conosco. Sempre foi sincero, honesto e nunca teve vergonha de pedir desculpas quando fez bobagens. Não é verdade?
- Verdade, Dust. Você tem razão.
- Logo, essas virtudes fazem parte do seu conjunto “oferta”, mas, por alguma razão, ele utiliza um núcleo diferente pra cada tipo de relação. Um para a família, um para os amigos e outro, o pior deles, para as mulheres. Dust está no grupamento de pessoas que chamo de “Indivíduos Multinucleados”. Mais ou menos isso aqui:



Na verdade, eu sempre achei que o núcleo do conjunto “oferta” que ele usava para as mulheres era composto, basicamente, de elementos virtuais. Ele é pobre e anda com roupa da moda, ele tem um carro que está bem acima da sua faixa de renda e mal tem dinheiro pra botar gasolina, ele é um cara inteligente, mas investe numa postura “Bad Boy” para paquerar. Além disso, existem aspectos catalisadores...
- PESSOAL, ACABOU A FARRA! A DONA MANDÔ FECHÁ! TA AÍ A CONTA DE VOCÊS.
- Pois é, Marcão. Mais uma teoria que eu não consigo terminar de te explicar...
- Pô, Dust! Esta me deixou curioso. Quero conhecer o restante da... Ô MUSSUM! ESTA CONTA NÃO É NOSSA!!!

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Pezinho - Parte 2


Aquele era o embate do século. Final do campeonato anual de xadrez da UFBA, do ano de 2004. E desta vez com uma novidade: Depois de alguns anos sem participar da competição, Mum-Rá estava de volta. Segundo contam, Mum-Rá teria ganhado todos os campeonatos dos quais participou, desde o primeiro, em 1965, até o de 2000, quando resolveu abrir mão de competir. Ele não divulgou o motivo de sua abstenção, mas diversos boatos floresceram nos corredores da universidade.

Uns diziam que ele já havia se convencido de que não encontraria um jogador à altura, outros diziam que o cérebro dele já funcionava como um computador, e que o “bug do milênio” teria danificado a região responsável pelo raciocínio lógico. Também havia os mais “exotéricos”, os quais especulavam que ele tinha um pacto com o diabo, que o fazia ser foda em tudo, mas o chifrudo teria desistido deste acordo nos últimos anos, pois havia cansado de esperar pela morte de Mum-Rá. O fato é que todos, alunos e professores, torciam pela derrota do velhaco, pois todos o detestavam.

Mum-Rá era chefe do departamento de Ciência da Computação e professor de algumas matérias do curso. Segundo ele, seu currículo era tão vasto que seriam necessárias duas aulas inteiras para relatar um resumo dele. Citava sempre, no início de cada semestre, seu mestrado em Harvard, doutorado em "Machachutes", PHD na Indiana State University e seu contrato de consultor da IBM, a qual pagava uma fortuna apenas para que ele aparecesse nos Estados Unidos uma vez por mês. Também se gabava de ter sido um dos projetistas responsáveis pela construção do IBM Deep Blue, o computador que derrotou o campeão de xadrez Garry Kasparov, em 1997. Obviamente, todos pesquisavam a veracidade de tudo que ele dizia. E todos sempre acabavam concluindo que era tudo verdade mesmo. O cara era fodão!

Como era praticamente um deus, devia ser humilhante pra ele desperdiçar seu tempo divino com essas baratinhas sujas e cheias de sonhos medíocres chamadas "estudantes". Ninguém entendia sua motivação de continuar dando aulas. O índice de reprovação em suas turmas era sempre superior a 70%, exceto quando havia alguma garota bonita na sala, pois ele aliviava a cobrança pra ajudar a pobre donzela. Apesar de carrancudo e detestável, parecia gostar da fruta. Porém, não existem registros de que tenha conseguido "papar" alguma garotinha ao longo de sua carreira.

Vários alunos haviam sido jubilados ou teriam desistido do curso por causa de Mum-Rá. Alguns vinham atrasando a formatura, na esperança de que ele se aposentasse, para cursar as matérias com outro professor. Quando alguma garota bonita confirmava sua matrícula em uma matéria de Mum-Rá, a turma ficava lotada, faltava vaga pra quem queria. O problema é que anos se passavam sem que uma garota bonita entrasse naquele curso. Na minha turma, por exemplo, havia apenas 2 garotas. Uma pesava umas 10 arrôbas e a outra tinha mais pêlo no rosto que a maioria dos meus colegas.

- MARCÃO!!! MARCÃO!!! Chegou atrasado, negão!
- Pezinho, eu tava lá na faculdade de música. Tou cursando uma matéria optativa lá. Peguei o maior engarrafamento pra chegar aqui...
- Rapaz, é a partida final. Tá um a um. Mum-Rá ganhou a primeira e Dust a segunda.
- Cara, você já tá fedendo a cachaça! Não ia rolar uma banda de Rock aí?
- A banda parou pra ver a partida. Olha lá! Os caras tão ali.
- Rapaz, que multidão! Aquele ali é o reitor?
- É ele mesmo, Marcão. Ele também é inimigo do Mum-Rá! Este filadaputa tem que se fuder HOJE!

Pezinho, que já tinha perdido duas vezes uma matéria com Mum-Rá, pertencia ao time dos que esperavam ele se aposentar, ou, de preferência, morrer. Pelo visto, Pezinho teria uma alegria naquela noite. Mum-Rá demonstrava muita tensão. O rosto vermelho e contraído, as bochechas trêmulas e a camisa social encharcada de suor. Dust estava do mesmo jeito de sempre. Olhar indiferente, relaxado, cabeça pendendo sobre o ombro esquerdo... De vez em quando, dava umas coçadinhas na barbicha e olhava vagamente para o teto, como se estivesse pensando no que iria comer mais tarde. Aquela postura do Dust intimidava demais. Mum-Rá devia estar se sentindo um palerma, uma presa que caiu em uma armadilha e ainda está procurando entender como isto aconteceu.

O fim era iminente e a platéia pressentia o momento chegando. Foi aí que um grupo de nerds iniciou um coro peculiar: Quando era a vez do Dust jogar, eles começavam a sussurrar “Thunder! Thunder! Thunder!...” e iam aumentando o volume até virar um grito de guerra. Quando era a vez do Mum-Rá, todos se calavam e o silêncio era mórbido. Pezinho, além de bêbado, já estava à beira de um ataque e não gostou nada da cantoria:

- Ô CARA DE KOMBI!!! QUE PORRA É ESSA? VOCÊS VÃO ATRAPALHAR O CARA!!!
- Pezinho, não fui eu quem começou isso não!!!
- CLARO QUE FOI!!! ESSA MERDA COMEÇOU AÍ E EU JÁ TOU PUTO...
- thunder! Thunder! THunder!THUnder!THUNder!
- Vá à merda, seu bêbado! Eu também tou tentando prestar atenção no jogo!
- MESMO BÊBADO, EU POSSO ARREBENTAR SUA CARA, SEU IMBECIL! VOCÊ ACHA QUE EU TENHO MEDO DE VOCÊ! VOCÊ É FORTE, MAS NÃO PÁRA BALA! EU SOU DO MAL, NEGÃO! SE EU FOR ATÉ AÍ...
- Então venha, seu pé de alface!!! Nem arma você tem! Pra andar armado o cara tem que ter coragem!
- thunder! Thunder! THunder!THUnder!THUNder! THUNDer! THUNDEr!

Aí foi que a merda foi pro ventilador. Pezinho, um pobre bebum de pouco mais de metro e meio e pouco menos de setenta quilos, partiu pra cima de Cara de Kombi, que era uma "tora" de um e noventa e uns cem quilos de massa muscular, praticante de jiu jitsu e que tinha como hobby arrebentar “playboys” nas saídas das boates da cidade. Felizmente, vários colegas estavam entre eles, e evitaram a tragédia. Na verdade, Minduim, um nerd minúsculo, foi forte o suficiente pra segurar o Pezinho, em seu frenesi insano de fúria indomável. Cara de Kombi já prestava atenção ao jogo novamente. Conhecia o Pezinho...

- thunder! Thunder! THunder!THUnder!THUNder! THUNDer! THUNDEr! THUNDER!
- Ele tem sorte, Marcão! Se esses caras não me seguram ele ia ver só uma...
- CALA A BOCA, PEZINHO! Só tem um cara aí te segurando. E é o Minduim!

Pezinho olhou sobre o ombro meio desacreditado e confirmou que era mesmo o Minduim que o mantinha imobilizado. Além disso, viu que Arlete estava chegando e, pela cara dela, já tinha visto ou ouvido falar da encrenca que ele tinha criado. O valentão engoliu em seco e calou a matraca.

- Minduim, pode soltar este elemento!
- Tem certeza, Arlete? Ele tá meio nervoso...
- Pode soltar! Adailton, precisamos conversar.
- thunder! Thunder! THunder!THUnder!THUNder! THUNDer! THUNDEr! THUNDER!
- Pô, amor! Vamo ver o final do xadrez...
- Adailton, eu não vou ficar aqui. Se você não vier conversar comigo agora, eu vou embora sem nem falar com você.

Arlete levou Pezinho pro canto e o detonou! A conversa deles foi rápida, durou apenas uns 3 “Thunder” e ela foi embora furiosa. Pezinho voltou pro grupo, cabisbaixo, destruído e quase sem voz. Acho que passou até o efeito da cachaça.

- Como tá o jogo, Marcão?
- Cara, parece que tá num momento crucial. É a vez do Mum-Rá. Ele tá pensando há uns 10 minutos e nunca pareceu tão nervoso. Olha lá as mãos dele! Estão tremendo demais...

Dust agora coçava a bochecha e olhava calmamente para o tabuleiro. Quando Mum-Rá fazia qualquer menção de que iria jogar, Dust olhava bem nos olhos dele. Um olhar que passava uma mensagem do tipo: “Um vacilo e eu acabo com você, seu verme!”. Mum-Rá hesitou inúmeras vezes. Provavelmente, por estar intimidado e amedrontado, deve ter desistido de jogadas arrojadas, que poderiam definir o jogo em seu favor. Lembrei do Roberto Baggio na final da copa. O gol poderia ser 10 vezes maior e mesmo assim aquele italiano chutaria pra fora.

- Marcão, Arlete tá puta da vida comigo!
- Com razão! Você convida a garota pra vir aqui, e quando ela chega te encontra bêbado e arrumando briga!
- Eu acho que ela nem vai mais querer me ver. Eu sou um merda mesmo!
- Não seja tão duro, Pezinho. Você é apenas um bêbado, irreponsável, inconseqüente e que não sabe tratar uma mulher que... Olha lá! Que é aquilo? Deram uma vassoura pro Dust?
- Não entendeu, Marcão? Aquela é a espada justiceira. Não teve infância não, negão?

Dust deitou a vassoura em seu colo e manteve sua postura tranqüila e zombeteira. A platéia já estava impaciente com a demora de Mum-Rá. Ouviam-se "Joga logo, sua múmia!", "Invoca os espirítos do mal!", "Se cuida, Dust! Ele vai se transformar!" e muitas gargalhadas. Que noite divertida aquela.

Quando Mum-Rá finalmente curvou-se sobre o tabuleiro e pegou uma das peças, todos se calaram. Não se ouvia nem respiração. Olhei para o pessoal da primeira fila, que observava o jogo bem de perto, e percebi que algo importante estava prestes a acontecer. Eles eram os jogadores desclassificados, eram bons, entendiam daquela porcaria e agora carregavam uma expressão enigmática nos rostos. Um cochichava algo no ouvido do outro, faziam caretas, cerravam os olhos e franziam a testa. Nenhum sorriso. Não cheguei nem perto de decifrar o que pensavam. Mum-Rá concluiu sua jogada. Era a vez de Dust. A platéia estava tão tensa que esqueceu de fazer o canto do "Thunder".

- Porra, Marcão! Acho que vou ter um enfarto! Me dá um gole dessa cerveja aí!
- Cala a boca! Eu acho que o jogo acaba agora!
- Cara, tem que acabar logo. Tenho que ir lá na casa da Arlete, pedir desculpas a ela!
- Ohhh! Upgrades... Você pedindo desculpa a mulher... Não achava que presenciaria este fato em minha vida.
- Marcão, olha lá! Acho que Dust vai jogar!

Existem momentos da vida em que a tênue fronteira entre o fracasso e o sucesso absoluto resume-se à sua capacidade de manter a mente funcionando, em meio a sobrecargas de adrenalina, tremores na barriga, calafrios, transpiração e temor. Estes momentos são inesquecíveis, mudam sua vida para sempre e resumem radicalmente dias, meses ou anos de sua história em apenas uma frase. O esforço só traz orgulho se você vence nestes momentos. De outro modo, o esforço transforma-se, num piscar de olhos, em tempo perdido.

Você pode estar totalmente preparado para realizar uma tarefa, sem muito esforço ou concentração, mas quando realizá-la significa algo de extrema importância, com certeza, alguns pequenos demônios vão tentar se apoderar dos seus sistemas digestivo, locomotor, neurológico e até da sua alma.

E, com a presença deles, nada é fácil.

A não ser que você seja o Dust, que nunca fica nervoso e nem se importa com este blá blá blá de medo, tensão, frio na barriga e nem com porra de diabinho...

- Pezinho, Dust levantou a vassoura! Olha lá! Que é que ele vai fazer?
- É a espada justiceira, Marcão! CARALHO! Arlete nem atende a porra do celular!

Foi aí que Dust, gesticulando com uma das mãos, cobrou da platéia o coro. Sua torcida atendeu, já começando a plenos pulmões:

- THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER!

Todos berravam o mais alto que podiam:

- THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER!

Até que, finalmente, Dust encarou Mum-Rá, que já aparentava a exaustão de um soldado baleado e faminto, pegou uma peça, realizou sua jogada, levantou-se da cadeira, ergueu a vassoura o mais alto que pôde e gritou:

- THUNDERCAAAAAATS!

E a platéia delirante:

- HHHHHHOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!!!!



[continua]