quinta-feira, 29 de março de 2012

Tio Zica - Parte 2

- Tio Zica, que dia nós vamos jogar paintball?

- Amanhã à noite.

- Tio Zica, você sabia que eu tenho uma namorada?

- Sério? E você já namora? Qual é o nome da garota?

- Tâmara. Mas ela ainda não sabe não. Eu vou falar pra ela no dia dos namorados. Falei com minha mãe que quero comprar um anel bem bonito pra dar de presente e... GOL!!!!

- Caraca! Você ganhou novo! Não entendo como é que você nem presta atenção no jogo e ainda joga tão bem!

- Tio Zica, nós vamos mesmo jogar paintball amanhã?

- Sim.

- Na casa do Bina, né?

- É.

- Eu falei com meu pai pra fazer um campo de paintball como o que tem na casa do Bina, mas ele disse que o espaço lá de casa é muito pequeno. O Bina disse que o espaço lá em casa dá pra fazer e disse também que o pai dele falou que meu pai não faz porque é um escroto e não liga pra... GOL!!!

- Rapaz!!! Como é que você fez este, hein? Do meio do campo...

- Tio Zica, eu pedi pra minha mãe me dar um cachorro de aniversário. Queria um cachorro bem grande, maior que a Chun-Li. Sabe o cachorro daquele filme de super herói que a gente viu na semana passada? Eu quero um igual àquele. O problema é minha mãe. Ela disse que cachorro tem ácaro, que são uns bichos "micocróspicos" que fazem mal. A minha namorada tem um cachorro e me disse que... GOL!!!

- Tico. Vamo tentar uma coisa nova? Vamo jogar uma partida caladinhos?

- Hummmm... Tá bom, Tio Zica. Mas não pode falar nada mesmo? Nem quando fizer um gol?

- Tá certo. Só pode falar “gol”, tá bom?

- Então tá!

- .....

- .....

- .....

- GOL!

- ....

- GOL!

- GOL!

- Caraca! De novo!!!

- Tio Zica, você falou...

- Tá bom, desculpa...

- GOL!

- GOL!

- Perdi de novo... Tico, você não estuda não? Fica só jogando esse treco em casa?

- Não, Tio Zica. Quase não dá tempo. Só posso jogar no final de semana porque minha mãe não... Olha! O telefone!

- Vou atender...

- Tio Zica, eu posso comer, né?

- Come aí um quilo de chocolate, já que ganhou umas dez partidas... Alô!

- Zica, é a Pati. Seguinte: Eu e a Lulu estamos indo no Pontão daqui a pouco. Hoje é aniversário de uma colega da academia. Vamos?

- Pati, hoje não posso sair. Estou aqui com o...

- NÃO ACREDITO que você vai deixar de sair comigo pra ficar em casa mexendo naquela mulher dos peitos caídos!!!

A mulher dos peitos caídos, citada pela Pati, é um quadro que o Zica vem pintando há uns 4 meses. É, para ele, uma das melhores pinturas que já fez e aquela que vem te trazendo mais ansiedade. Às vezes, acorda com grandes idéias para os próximos traços. Outras vezes, acredita com toda convicção do mundo de que sua obra já está pronta e que qualquer pingo de tinta adicional irá destruí-la.

Neste momento, Zica lembrou dos motivos pelos quais entrou em colapso algum tempo atrás: Andou com as pessoas erradas, freqüentou os lugares errados, viveu uma rotina que não escolheu direito, deixou a vida o arrastar.

Lidar com a ignorância e a leviandade das pessoas durante tantos anos quase o levou à morte. É plenamente aceitável que alguém se realize com carros novos, com jantares em restaurantes chiques, com televisores 3D ou com viagens para Paris, para Londres, para Nova York ou para a puta que o pariu. Mas espere que aceitem que uma maldita pintura de uma mulher do peito caído seja fonte de satisfação para um indivíduo...

É fácil cuspir na cova daqueles que não encontraram o que os completasse neste mundo. É fácil dizer "Oh! Mas ele tinha tudo do bom e do melhor e mesmo assim se destruiu!", "Oh! Mas era rico, famoso, dormia com quem quisesse e ainda assim se envolveu com drogas!", "Oh, mas ela tinha uma família maravilhosa e abandonou tudo pra viver uma vida solitária!". Difícil mesmo é ter que pertencer ao público-alvo deste apedrejamento. É não achar graça nenhuma no que os que te rodeiam consideram maravilhoso. É presenciar todos dizendo que você tem tudo quando, na verdade, você não tem nada.

Diante de tudo isso e por uma questão real de sobrevivência, Zica, convencido de que não conseguiria aceitar o mundo como ele é, necessitou adotar uma postura completamente diferente:

O mundo que me aceite como eu sou!

- Pati, é isso mesmo! Pra mim é muito mais proveitoso passar um mês pensando naquela mulher dos peitos caídos do que ter que aturar sua ladainha infame durante horas só pra apalpar os seus peitinhos consistentes. Um beijo!

- Tio Zica, a Chun-li tá comendo uma caixa de chocolate inteira, olha lá!

- Caraca, Tico! Você não viu ela pegando a caixa em cima da mesa? Essa cachorra vai me dar trabalho amanhã... CHUN-LI!!!! VAZA!!!!

- Tio Zica, a gente ainda vai jogar?

- Claro, eu só durmo depois de ganhar uma de você!

- Oba! Vamo jogar outro jogo agora! O de corrida!

- Pode botar, trombadinha! Esse eu sei que eu ganho! Já tenho mais de 10 anos de carteira e você nem alcança o acelera...

- Tio Zica, o telefone tá tocando!

- Deixa tocar. Estamos ocupados...

- Tio Zica, amanhã a gente vai jogar Paintball?

- Tico, eu já falei que sim duas vezes. Porquê você pergunta toda hora a mesma coisa?

- Desculpa, Tio Zica. É que minha mãe me ensinou a fazer isso com meu pai. Ela disse que se eu não ficar toda hora perguntando, ele não faz o que me prometeu.

- E funciona?

- Nunca funciona! Uma vez ele disse que ia me buscar na escola pra gente jogar boliche, eu perguntei várias vezes e ele me disse que ia, mesmo assim ele não foi. Outra vez ele disse que ia levar eu e minha mãe no Paintball mas não foi. Teve também a vez que ele disse que ia assistir os três filmes do Senhor dos Anéis comigo e não assistiu. Mas minha mãe me disse que ele tem um trabalho muito importante e que por isso...

- MAS VOCÊ não assistiu ao Senhor dos Anéis?

- Não. Meu pai disse que queria assistir comigo...

- Vamo assistir então. Essa semana eu compro o DVD.

- Lá em casa tem, Tio Zica. Minha mãe comprou. A Altina tá lá. A gente pode pegar.

- Relaxe. É melhor eu comprar outro. Tico, seu carro é melhor que o meu!!!

- Não é não, Tio Zica! O seu também é Porsche!

- Mas o seu deve ser mais novo! Olha lá! Meu carro não corre nada! Deve estar com problema na caixa de marcha...

- Êba!!! Cheguei em primeiro! Vou comer mais chocolate...

- Vamo outra! Agora eu vou pegar um fusca turbinado!

- Tio Zica...

- Hum?

- Deixa pra lá...

[continua]

quinta-feira, 15 de março de 2012

Tio Zica - Parte 1

- Tio Zica, podemos ir lá na casa do Bina hoje?

- Não vai dar, Tico. Hoje é domingo e já é tarde. Vamos pra casa jogar Playstation.

- De boa! Você comprou chocolate?

- Ta aí no banco de trás. Mas você vai ter que ganhar de mim pra comer, seu trombadinha!

- Tio Zica, a gente vai pescar?

- Claro! Amanhã.

- E a tia Ivana vai?

- Não, Tico. Amanhã é segunda-feira. Os trouxas trabalham.

- Ah é! Tio Zica, quase que meu pai não deixava eu vir. Eu ouvi ele dizendo pra minha mãe que você é “mau influência”. Eu perguntei pra minha mãe o que é isso e ela disse que eu não devia dar ouvidos ao meu pai. Ela também disse que não era pra eu te falar que meu pai disse que você é “mau influência”...

- Não é “mau influência”, Tico. É “má influência”! Seu pai quis dizer que você não devia andar comigo, pois ele acha que eu só te ensinaria coisas ruins. Seu pai acha que eu sou do mal, entendeu?

- Ele também disse que você é maconheiro e que cheira farinha. Aí minha mãe disse que ele não devia falar de você, pois ele é um bêbado. Minha mãe também disse que por isso ele nem comparece mais. Foi a maior briga.

- Quando foi essa confusão, Tico?

- Agora mesmo. Quando eu saí, eles ainda tavam brigando. Eles brigam todo dia.

- Tico, seu celular!

- É minha mãe... Oi mãe! Sim. Tá certo. Eu trouxe o... Tudo bem, mãe. Vou passar pra ele. Tio Zica, ela quer falar com você.

- Diga, Titica!

Ainda era bom ouvir a voz de Tiana. Por ter tão poucos momentos de convívio na fase adulta, sempre que falava com ela, Zica se lembrava da infância e adolescência deles. Tica e Zica eram uma dupla barra pesada. Aprontavam horrores...

- Zica, pelo amor de Deus, tenha cuidado com este menino! Lembre de dar as vitaminas no horário e não deixe que ele tome chuva, pois estava resfriado há alguns dias. Eu coloquei na mochila dele o... O QUE É, MURILO? SUA MALA TÁ NA SALA! ONDE VOCÊ DEIXOU!

Quando Tiana falou sobre as vitaminas, Zica lembrou-se do dia do aniversário da vovó Mandica, na casa dela. Ele e Tica atiraram pela janela do quarto todos os remédios que ficavam guardados no guarda-roupa da velha, tentando acertar um gato que andava em um terreno baldio, ao lado do prédio.

- ...não deixe ele ficar brincando com aqueles seus cachorros, pois eu li uma reportagem na internet... Só um instante... O TÁXI CHEGOU HÁ HORAS!!! VOCÊ AINDA VAI VIAJAR, MEU BEM? QUE DROGA!

Outra lembrança que fazia o Zica rir era a do dia em que eles grudaram vários chicletes mascados no cabelo da Alice, priminha vaidosa que vivia se penteando e se pintando, com aquelas maquiagens para criança, que eram vendidas na época. Zica nunca mais havia visto aquele tipo de brinquedo... Talvez ele não existisse mais... Quem sabe? Tanta coisa andou mudando em todos estes anos...

- ...cuidado quando for pescar, Zica. Não deixe o Tiago sozinho em momento algum. Leve água mineral e suco, pois ele NÃO bebe cerveja. Como você é a única pessoa deste planeta que não possui um aparelho celular, mantenha o aparelho do Tico carregado. Não se esqueça disso. Eu enviei todas as orientações via email e...

Zica, que já nem prestava mais atenção ao que Tiana falava, começou a mexer no som do carro, navegando nas pastas do seu pendrive em busca de uma música.

-...além disso, não deixe o Tiago ficar assistindo TV a cabo sozinho até tarde, pois em alguns canais que são “inofensivos” durante o dia, começam a passar filmes pornô. Outro dia ele estava assistindo ao Multishow e...

Marco se n'è andato e non ritorna più/ E il treno delle 7:30 senza lui/ È un cuore di metallo senza l'anima/ Nel freddo del mattino grigio di città

-...ZICA!!! DEIXE DE BRINCADEIRA E ABAIXE ESTE SOM...

- Meu fofo... Estou escrevendo mais esta cartinha para te dizer o quanto meu coração fica apertado sem você...

- HAHAHA! SEU IDIOTA!

- ...e que eu penso o tempo inteiro em te encontrar novamente, te tocar, te sentir...

Chissà se tu mi penserai/Se con i tuoi non parli mai/Se ti nascondi come me/Sfuggi gli sguardi e te ne stai

- EU DEVO SER LOUCA MESMO PRA DEIXAR MEU FILHO COM VOCÊ!

Mas agora Tiana falava sorrindo. Prendendo uma gargalhada. Ela se divertia muito com o irmão. Ele sabia que essa chacota sobre a adolescência dela era vencedora.

Quando ela se apaixonou pela primeira vez foi, segundo o Zica, insuportável. Passava o dia inteiro ouvindo Laura Pausini e escolhendo papéis de carta para escrever aqueles versinhos ingênuos e repetitivos para um pirralho da escola, seu grande amor. Antes de entregar os versos ao rapaz, ela passava para o Zica ler e dizer o que achava deles. O Zica, que é alguns anos mais velho que Tiana, achava aqueles bilhetinhos extremamente enfadonhos, mas fazia questão de lê-los. Era um irmão atencioso e companheiro.

Rinchiuso in camera e non vuoi mangiare/Stringi forte a te il cuscino/Piangi e non lo sai quanto altro male ti fará...

- Titica, eu te amo e vou dar ao seu filho o melhor aniversário que ele teve na vida, mas não posso mais conversar agora. Tá meio barulhento aqui. Vou ter que desligar!!!

- ABAIXE ESTE SOM, SEU...

- tu tu tu tu tu tu tu...

Tiana ria muito. Seu rosto já estava trêmulo e dolorido. Foi pegar sua bolsa na cozinha cambaleando de tanto gargalhar. Lembrava daquelas coisas da adolescência com vergonha de si mesma. Achou engraçado que o Zica não se lembrava de um detalhe tão relevante para sua chacota, que era o fato de que ela borrifava perfume nos bilhetes, e ele ainda ajudava a escolher qual o cheiro que melhor "combinava" com o texto.

Seus olhos se encheram de lágrimas e, ainda rindo, sentou-se no chão frio da cozinha escura e começou a chorar. As gargalhadas foram virando soluços sufocados de tristeza, enquanto ela encostava as costas na geladeira e apoiava a cabeça sobre as pernas dobradas.

Chorava como uma adolescente desiludida, tentando fingir não saber o motivo para estar se sentindo tão desesperada. Lá fora, seu marido a esperava impacientemente, pedindo para o motorista do taxi continuar buzinando.

...la solitudine


[continua]

quarta-feira, 7 de março de 2012

Cara de Kombi

Uma das brincadeiras infames preferidas dos que jogavam dominó era ficar inventando supostos nomes para matérias universitárias que abordassem o tema. Dentre os dignos de lembrança, estavam "Introdução à lógica dominolística", "Dominó I e II", "Equações diferenciais aplicadas ao dominó" e "Teoria dos jogos de dominó". Até que, na época, essa brincadeira parecia engraçada, mas, pensando nisso hoje, não consigo ver graça nenhuma.

Dominó era a atividade mais popular da universidade. Era talvez a mais democrática, pois muitas vezes era o único motivo capaz de reunir diferentes grupos ideológicos, diferentes turmas e sexos, além de possuir a notável "virtude" de levar professores e aqueles alunos mais estudiosos, dedicados e circunspectos aos bares mais cavernosos das redondezas, como aquele onde estávamos naquela noite.

O "Faltando um Pedaço" era um boteco de pior qualidade que ficava em frente à faculdade de geologia, sendo apelidado pelos freqüentadores de "Caindo aos pedaços", por causa de suas instalações inadequadas e outros aspectos precários de seu funcionamento. Porém, quando se é estudante quebrado, a cerveja barata e a possibilidade de pendurar a conta são os fatores determinantes para a escolha de onde freqüentar. No Caindo, a Schincariol custava um real e uma porção de chuleta, com "consistência" suficiente para que 3 pessoas passassem a noite "mascando", custava uns quatro contos. Em resumo, qualquer esfarrapado faria uma farra lá.

Aquela não era uma noite muito agradável, pois além de ser uma segunda-feira chuvosa, era véspera da prova de Engenharia de Software (matéria ministrada pelo professor Mun-Ha) e o bar estava cheio dos chapadões de geologia, que chegavam às duas da tarde e, àquela altura, já estavam completamente alucinados, berrando frases aleatórias e batucando canções irreconhecíveis nas mesas e cadeiras enferrujadas. Ser estudante é isso: Ser livre.

O teto do bar, feito de “Eternit”, tinha muitas goteiras e Tonho da Lua, o dono, era convicto em acreditar que era mais prático e barato espalhar baldes plásticos pelo chão do que pagar uma bagatela pra qualquer pobre alma tapar os furos com durepox ou qualquer outra solução mais duradoura. De vez em quando, um geobêbado acabava tropeçando em um dos baldes, fazendo aquela onda de água de chuva que encharcava os pés de todos. Quando isso acontecia, os demais geobêbados gritavam "TSUNAMI!!!" e se afogavam em gargalhadas. Era um cenário bastante desagradável. Ser estudante é isso: Ser livre.

Mas o pior de ficar no Caindo em noite de chuva era suportar o calor e a fumaça de cigarro, pois dentre as brilhantes idéias que o Tonho teve para seu negócio, uma delas foi a de cobrir as laterais do bar (que eram vazadas) com lona de caminhão. "É pá num entrá essas fumaça dos carro, que faiz muito mal pá respiração", dizia com ar de professor.

Outro problema sério do Caindo era sua localização, bem em frente a uma rua muito movimentada. Da entrada do bar, apenas dois passos eram suficientes para um atropelamento, e foram tantos nos últimos meses que a prefeitura acabou colocando um quebra-molas bem em frente à bodega. Os motoristas da cidade já eram cientes do perigo daquela rua. Passavam buzinando e dando sinais de luz pra alertar os geobêbados que, de tempos em tempos, atravessavam a pista cambaleando pra fumar maconha na faculdade, pois Tonho não permitia o consumo de drogas ilícitas no seu estabelecimento: "Meu bar é um lugá de respeito! Vão fumá sua porra pá lá!", berrava quando sentia algum odor suspeito. Ser estudante é isso.

Jogávamos eu e Cara de Kombi contra 2 professores: Marinalva e Sabidão. Este não sabia porra nenhuma de dominó (e nem de qualquer outra porra), mas Marinalva era foda. Era aquele tipo de pessoa endiabrada que, na segunda rodada, já sabia o que cada um tinha na mão e conseguia prever e conduzir todo o resto do jogo (nunca consegui entender este talento). Resumindo: Eu sabia que perderíamos todas as partidas e que Cara de Kombi colocaria a culpa em mim, pois, apesar de ele também ser um péssimo jogador, possuía um orgulho incomparável.

Pra piorar a situação, Cara de Kombi estava a fim de Liliane, que estava lá no bar, no meio dos geobêbados. Ele nem prestava atenção no jogo, contemplando sua paixão. Liliane era uma linda garotinha do curso de administração, a única patricinha daquela faculdade que freqüentava uma espelunca daquela categoria. Fazia isso por causa das suas duas geoamigas de infância: Kika e Gina. As três eram bem bonitas, desejadas e nascidas em berços de ouro. Elas já estavam bêbadas. Também curtiam uma fumacinha, pois de vez em quando atravessavam a rua pra dar um tapa na pantera...

Lili até queria fazer vestibular pra geologia, pra continuar seu convívio com suas parceiras, as quais escolheram o curso por conta de outros amigos que lá estudavam e diziam que era a faculdade da putaria (no bom sentido, claro). Porém, seus pais a proibiram de fazer isso, pois sabiam que aquelas duas porras-loucas colocariam sua inocente filha no mau caminho. Lili foi pra outro curso, mas continuou no mau caminho. Existem várias rotas para o inferno.

Quando auferimos nossa terceira derrota consecutiva, Cara de Kombi reclamou:
- Porra, Marcão! Joga direito!!!

- Meu amigo, você viu a merda que você acabou de fazer aí? Matou sua própria bucha...

- Matei nada, rapaz! Você é que fez bobagem...

- Marinalva interrompeu: - Matou mesmo, Sérgio. Você é que não percebeu, pois parece um pouco desconcentrado...

- Ah Nalvinha! É que eu fico desanimado jogando com Marcão. O cara é muito ruim! Não faz uma jogada que...

Neste momento, Sabidão levantou da mesa e correu na direção do banheiro, para vomitar, provavelmente. Nem beber aquele sacana sabia. Apenas 3 copos de cerveja eram o suficiente pra mandá-lo para a UTI. Por isso, ele quase nunca bebia, mas, de vez em quando, resolvia tentar acompanhar o ritmo de outros professores, talvez por uma questão de auto-afirmação. Infelizmente, ele tentou acompanhar a Nalvinha, que era uma bebedora profissional e professora de bioquímica. Com freqüência, ela tirava algum comprimido da bolsa e engolia. Ninguém nunca teve coragem de perguntar por que ela fazia isso e nem que tipo de "medicamento" era aquele. Existem relatos de que Nalvinha teria ficado no Caindo até 4 da manhã e que teria dado aula das 7:30h até 20h, em seguida à bebedeira, sem apresentar qualquer sinal de cansaço (nem mesmo um bocejo).

Quando Sabidão voltou do banheiro, pálido, Nalvinha falou:

- Pessoal, vou embora. Já é mais de meia noite e ainda preciso terminar um artigo pra passar pro departamento pela manhã.

- E Sabidão:

- E-E-Eu também já vou. N-N-Não me sinto mui-mui-muito bem...

Todo mundo tem um amor na vida e por ele tudo é capaz/Eu tenho uma paixão que é proibida só porque eu sou pobre demais

Eu também queria ir embora, mas Cara de Kombi insistiu pra que eu ficasse:
- Marcão, vamo dar um tempo aqui. Tou sentindo que hoje eu pego aquela tal de Lili. A mulé não pára de olhar pra cá.

- Tem certeza? Não havia percebido não...

- Fique ligado que você vai ver.

- Tudo bem, Sérgio. Mas só vou tomar mais uma.

Fico muito triste ao lembrar do Cara de Kombi. Principalmente por conta do evento trágico que veio a ocorrer em sua vida, alguns anos após aquela noite. Cara de Kombi era uma pessoa como outra qualquer. Apenas mais uma pobre alma em busca da felicidade em um mundinho severo, onde estamos sempre aquém das expectativas, onde somos convencidos que devemos buscar arduamente atingir objetivos que, na verdade, não fazem diferença alguma pra nós, onde somos ou feios, ou gordos, ou desejosos por ter o que não temos (e nem precisamos ter).

Cara de Kombi era feio mesmo. Seus olhos eram pequenos e bem afastados, sua testa era protuberante e sua boca enorme, de orelha a orelha (sem muito exagero). Ele era realmente muito parecido com uma Kombi. Também era pobre e morava longe. Como eu, era humilhado diariamente ao ter que encarar ônibus velhos, cheios, sujos e que viviam quebrando.

Mas ele era um cara legal. Amigo dedicado, inteligente e divertido. Sempre sorridente, tinha um bom astral e boas piadas. O problema do Kombi é que ele seguia o caminho oposto do de Dust: Fingia ter valores mais superficiais dos que realmente tinha, tratava suas virtudes com desdém e concentrava suas energias no ódio e aversão aos seus defeitos. Vivia tentando ser outra pessoa. Pior do que ele mesmo.

A garota que eu adoro/por quem tanto choro não pode me ver/Nunca soube o que é tristeza/ Vive na riqueza sem poder viver

- Marcão, vamo colar na mulherada lá.

- Sérgio, aquela não é nossa galera não.

- Deixe comigo. Vou lá falar com elas.

- Boa sorte. Vou ficar por aqui mesmo...

E foi. Cara de Kombi era destemido mesmo. Procurava demonstrar que não se importava com suas evidentes limitações. Aparentemente, foi bem recebido e até mesmo convidado a se sentar. Começou a buscar entrosamento, mostrou-se à vontade e confiante, contou alguma gracinha e fez a mulherada sorrir. Estava seguindo o manual.

Foi aí que chegou o Pezinho, bêbado, jogando água no brinquedo...

- Grande Marcão!!! Altas horas hoje, hein meu velho? Não vai fazer a prova amanhã não?

- Vou sim e você?

- Porra nenhuma, negão! Tranquei aquela bosta. Vou esperar aquele miserável morrer!

- Cadê Arlete?

- Tá em casa. Vai acordar cedo amanhã. Tava tomando uns vinhos lá com ela e resolvi passar aqui pra tomar a saidei... Olha quem tá ali, negão! Todo compenetrado...

- Pezinho, deixa o cara lá, velho. Ele tá...

- CARA DE KOMBI, PUTA VELHA! ESSA KOMBI É MOVIDA A ÁLCOOL ETÍLICO! HAHAHA!!!

E o resultado foi catastrófico.

[continua]