
Aquele era o embate do século. Final do campeonato anual de xadrez da UFBA, do ano de 2004. E desta vez com uma novidade: Depois de alguns anos sem participar da competição, Mum-Rá estava de volta. Segundo contam, Mum-Rá teria ganhado todos os campeonatos dos quais participou, desde o primeiro, em 1965, até o de 2000, quando resolveu abrir mão de competir. Ele não divulgou o motivo de sua abstenção, mas diversos boatos floresceram nos corredores da universidade.
Uns diziam que ele já havia se convencido de que não encontraria um jogador à altura, outros diziam que o cérebro dele já funcionava como um computador, e que o “bug do milênio” teria danificado a região responsável pelo raciocínio lógico. Também havia os mais “exotéricos”, os quais especulavam que ele tinha um pacto com o diabo, que o fazia ser foda em tudo, mas o chifrudo teria desistido deste acordo nos últimos anos, pois havia cansado de esperar pela morte de Mum-Rá. O fato é que todos, alunos e professores, torciam pela derrota do velhaco, pois todos o detestavam.
Mum-Rá era chefe do departamento de Ciência da Computação e professor de algumas matérias do curso. Segundo ele, seu currículo era tão vasto que seriam necessárias duas aulas inteiras para relatar um resumo dele. Citava sempre, no início de cada semestre, seu mestrado em Harvard, doutorado em "Machachutes", PHD na Indiana State University e seu contrato de consultor da IBM, a qual pagava uma fortuna apenas para que ele aparecesse nos Estados Unidos uma vez por mês. Também se gabava de ter sido um dos projetistas responsáveis pela construção do IBM Deep Blue, o computador que derrotou o campeão de xadrez Garry Kasparov, em 1997. Obviamente, todos pesquisavam a veracidade de tudo que ele dizia. E todos sempre acabavam concluindo que era tudo verdade mesmo. O cara era fodão!
Como era praticamente um deus, devia ser humilhante pra ele desperdiçar seu tempo divino com essas baratinhas sujas e cheias de sonhos medíocres chamadas "estudantes". Ninguém entendia sua motivação de continuar dando aulas. O índice de reprovação em suas turmas era sempre superior a 70%, exceto quando havia alguma garota bonita na sala, pois ele aliviava a cobrança pra ajudar a pobre donzela. Apesar de carrancudo e detestável, parecia gostar da fruta. Porém, não existem registros de que tenha conseguido "papar" alguma garotinha ao longo de sua carreira.
Vários alunos haviam sido jubilados ou teriam desistido do curso por causa de Mum-Rá. Alguns vinham atrasando a formatura, na esperança de que ele se aposentasse, para cursar as matérias com outro professor. Quando alguma garota bonita confirmava sua matrícula em uma matéria de Mum-Rá, a turma ficava lotada, faltava vaga pra quem queria. O problema é que anos se passavam sem que uma garota bonita entrasse naquele curso. Na minha turma, por exemplo, havia apenas 2 garotas. Uma pesava umas 10 arrôbas e a outra tinha mais pêlo no rosto que a maioria dos meus colegas.
- MARCÃO!!! MARCÃO!!! Chegou atrasado, negão!
- Pezinho, eu tava lá na faculdade de música. Tou cursando uma matéria optativa lá. Peguei o maior engarrafamento pra chegar aqui...
- Rapaz, é a partida final. Tá um a um. Mum-Rá ganhou a primeira e Dust a segunda.
- Cara, você já tá fedendo a cachaça! Não ia rolar uma banda de Rock aí?
- A banda parou pra ver a partida. Olha lá! Os caras tão ali.
- Rapaz, que multidão! Aquele ali é o reitor?
- É ele mesmo, Marcão. Ele também é inimigo do Mum-Rá! Este filadaputa tem que se fuder HOJE!
Pezinho, que já tinha perdido duas vezes uma matéria com Mum-Rá, pertencia ao time dos que esperavam ele se aposentar, ou, de preferência, morrer. Pelo visto, Pezinho teria uma alegria naquela noite. Mum-Rá demonstrava muita tensão. O rosto vermelho e contraído, as bochechas trêmulas e a camisa social encharcada de suor. Dust estava do mesmo jeito de sempre. Olhar indiferente, relaxado, cabeça pendendo sobre o ombro esquerdo... De vez em quando, dava umas coçadinhas na barbicha e olhava vagamente para o teto, como se estivesse pensando no que iria comer mais tarde. Aquela postura do Dust intimidava demais. Mum-Rá devia estar se sentindo um palerma, uma presa que caiu em uma armadilha e ainda está procurando entender como isto aconteceu.
O fim era iminente e a platéia pressentia o momento chegando. Foi aí que um grupo de nerds iniciou um coro peculiar: Quando era a vez do Dust jogar, eles começavam a sussurrar “Thunder! Thunder! Thunder!...” e iam aumentando o volume até virar um grito de guerra. Quando era a vez do Mum-Rá, todos se calavam e o silêncio era mórbido. Pezinho, além de bêbado, já estava à beira de um ataque e não gostou nada da cantoria:
- Ô CARA DE KOMBI!!! QUE PORRA É ESSA? VOCÊS VÃO ATRAPALHAR O CARA!!!
- Pezinho, não fui eu quem começou isso não!!!
- CLARO QUE FOI!!! ESSA MERDA COMEÇOU AÍ E EU JÁ TOU PUTO...
- thunder! Thunder! THunder!THUnder!THUNder!
- Vá à merda, seu bêbado! Eu também tou tentando prestar atenção no jogo!
- MESMO BÊBADO, EU POSSO ARREBENTAR SUA CARA, SEU IMBECIL! VOCÊ ACHA QUE EU TENHO MEDO DE VOCÊ! VOCÊ É FORTE, MAS NÃO PÁRA BALA! EU SOU DO MAL, NEGÃO! SE EU FOR ATÉ AÍ...
- Então venha, seu pé de alface!!! Nem arma você tem! Pra andar armado o cara tem que ter coragem!
- thunder! Thunder! THunder!THUnder!THUNder! THUNDer! THUNDEr!
Aí foi que a merda foi pro ventilador. Pezinho, um pobre bebum de pouco mais de metro e meio e pouco menos de setenta quilos, partiu pra cima de Cara de Kombi, que era uma "tora" de um e noventa e uns cem quilos de massa muscular, praticante de jiu jitsu e que tinha como hobby arrebentar “playboys” nas saídas das boates da cidade. Felizmente, vários colegas estavam entre eles, e evitaram a tragédia. Na verdade, Minduim, um nerd minúsculo, foi forte o suficiente pra segurar o Pezinho, em seu frenesi insano de fúria indomável. Cara de Kombi já prestava atenção ao jogo novamente. Conhecia o Pezinho...
- thunder! Thunder! THunder!THUnder!THUNder! THUNDer! THUNDEr! THUNDER!
- Ele tem sorte, Marcão! Se esses caras não me seguram ele ia ver só uma...
- CALA A BOCA, PEZINHO! Só tem um cara aí te segurando. E é o Minduim!
Pezinho olhou sobre o ombro meio desacreditado e confirmou que era mesmo o Minduim que o mantinha imobilizado. Além disso, viu que Arlete estava chegando e, pela cara dela, já tinha visto ou ouvido falar da encrenca que ele tinha criado. O valentão engoliu em seco e calou a matraca.
- Minduim, pode soltar este elemento!
- Tem certeza, Arlete? Ele tá meio nervoso...
- Pode soltar! Adailton, precisamos conversar.
- thunder! Thunder! THunder!THUnder!THUNder! THUNDer! THUNDEr! THUNDER!
- Pô, amor! Vamo ver o final do xadrez...
- Adailton, eu não vou ficar aqui. Se você não vier conversar comigo agora, eu vou embora sem nem falar com você.
Arlete levou Pezinho pro canto e o detonou! A conversa deles foi rápida, durou apenas uns 3 “Thunder” e ela foi embora furiosa. Pezinho voltou pro grupo, cabisbaixo, destruído e quase sem voz. Acho que passou até o efeito da cachaça.
- Como tá o jogo, Marcão?
- Cara, parece que tá num momento crucial. É a vez do Mum-Rá. Ele tá pensando há uns 10 minutos e nunca pareceu tão nervoso. Olha lá as mãos dele! Estão tremendo demais...
Dust agora coçava a bochecha e olhava calmamente para o tabuleiro. Quando Mum-Rá fazia qualquer menção de que iria jogar, Dust olhava bem nos olhos dele. Um olhar que passava uma mensagem do tipo: “Um vacilo e eu acabo com você, seu verme!”. Mum-Rá hesitou inúmeras vezes. Provavelmente, por estar intimidado e amedrontado, deve ter desistido de jogadas arrojadas, que poderiam definir o jogo em seu favor. Lembrei do Roberto Baggio na final da copa. O gol poderia ser 10 vezes maior e mesmo assim aquele italiano chutaria pra fora.
- Marcão, Arlete tá puta da vida comigo!
- Com razão! Você convida a garota pra vir aqui, e quando ela chega te encontra bêbado e arrumando briga!
- Eu acho que ela nem vai mais querer me ver. Eu sou um merda mesmo!
- Não seja tão duro, Pezinho. Você é apenas um bêbado, irreponsável, inconseqüente e que não sabe tratar uma mulher que... Olha lá! Que é aquilo? Deram uma vassoura pro Dust?
- Não entendeu, Marcão? Aquela é a espada justiceira. Não teve infância não, negão?
Dust deitou a vassoura em seu colo e manteve sua postura tranqüila e zombeteira. A platéia já estava impaciente com a demora de Mum-Rá. Ouviam-se "Joga logo, sua múmia!", "Invoca os espirítos do mal!", "Se cuida, Dust! Ele vai se transformar!" e muitas gargalhadas. Que noite divertida aquela.
Quando Mum-Rá finalmente curvou-se sobre o tabuleiro e pegou uma das peças, todos se calaram. Não se ouvia nem respiração. Olhei para o pessoal da primeira fila, que observava o jogo bem de perto, e percebi que algo importante estava prestes a acontecer. Eles eram os jogadores desclassificados, eram bons, entendiam daquela porcaria e agora carregavam uma expressão enigmática nos rostos. Um cochichava algo no ouvido do outro, faziam caretas, cerravam os olhos e franziam a testa. Nenhum sorriso. Não cheguei nem perto de decifrar o que pensavam. Mum-Rá concluiu sua jogada. Era a vez de Dust. A platéia estava tão tensa que esqueceu de fazer o canto do "Thunder".
- Porra, Marcão! Acho que vou ter um enfarto! Me dá um gole dessa cerveja aí!
- Cala a boca! Eu acho que o jogo acaba agora!
- Cara, tem que acabar logo. Tenho que ir lá na casa da Arlete, pedir desculpas a ela!
- Ohhh! Upgrades... Você pedindo desculpa a mulher... Não achava que presenciaria este fato em minha vida.
- Marcão, olha lá! Acho que Dust vai jogar!
Existem momentos da vida em que a tênue fronteira entre o fracasso e o sucesso absoluto resume-se à sua capacidade de manter a mente funcionando, em meio a sobrecargas de adrenalina, tremores na barriga, calafrios, transpiração e temor. Estes momentos são inesquecíveis, mudam sua vida para sempre e resumem radicalmente dias, meses ou anos de sua história em apenas uma frase. O esforço só traz orgulho se você vence nestes momentos. De outro modo, o esforço transforma-se, num piscar de olhos, em tempo perdido.
Você pode estar totalmente preparado para realizar uma tarefa, sem muito esforço ou concentração, mas quando realizá-la significa algo de extrema importância, com certeza, alguns pequenos demônios vão tentar se apoderar dos seus sistemas digestivo, locomotor, neurológico e até da sua alma.
E, com a presença deles, nada é fácil.
A não ser que você seja o Dust, que nunca fica nervoso e nem se importa com este blá blá blá de medo, tensão, frio na barriga e nem com porra de diabinho...
- Pezinho, Dust levantou a vassoura! Olha lá! Que é que ele vai fazer?
- É a espada justiceira, Marcão! CARALHO! Arlete nem atende a porra do celular!
Foi aí que Dust, gesticulando com uma das mãos, cobrou da platéia o coro. Sua torcida atendeu, já começando a plenos pulmões:
- THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER!
Todos berravam o mais alto que podiam:
- THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER! THUNDER!
Até que, finalmente, Dust encarou Mum-Rá, que já aparentava a exaustão de um soldado baleado e faminto, pegou uma peça, realizou sua jogada, levantou-se da cadeira, ergueu a vassoura o mais alto que pôde e gritou:
- THUNDERCAAAAAATS!
E a platéia delirante:
- HHHHHHOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!!!!

[continua]
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