quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O problema da Gildete



...
- O mundo é dos vencedores, Gil. Vencedores. Os vencedores são fotografados. Os vencedores são contemplados, admirados, reconhecidos, amados. Você já viu algum documentário sobre um perdedor? Por exemplo, você acha que se o Barrichello morresse na pista, haveria toda aquela comoção e tristeza que ocorreram quando o Sena se foi?
-  Como eu já disse, Dust: eu me considero uma vencedora. Aliás, eu SOU uma vencedora! Olhe a minha formação acadêmica, minhas quatro “pós”, meu cargo, minha posição social, minha estrutura famili...
- O SEU PROBLEMA, Gildete, é que você é FEIA!
Até o momento, as pessoas do grupo assistiam à discussão com uma curiosidade juvenil. Mas, com essa do Dust, começaram as gargalhadas da turma. Quase todos os homens do grupo adoravam o Dust. A mulherada evitava. Neste caso, pelo visto, as meninas viraram fãs de carteirinha do cara, obviamente, por detestarem a Gildete, que era tida como “metida a besta”, arrogante e imponente. Ou seja, o inimigo do meu inimigo...
 A Gil e o Dust já se conheciam há muito tempo. Foram vizinhos na infância,  pegaram algumas matérias de faculdade juntos e até trabalharam no mesmo setor. Gil sabia bem onde estava se metendo, mesmo assim, pelo fato de considerar-se uma mulher bem resolvida, com uma autoestima elevada e psicologicamente inabalável, achava, até esta noite, que conseguiria ter uma conversa franca com o Dust, sem sair dela destruída.
- Dust, eu sei que eu posso estar um pouco acima do peso, mas isso...
- NÃO é isso, Gil. Eu acho que não fui claro. Existem aquelas gordas que, se fossem magras, seriam bonitas. As pessoas comentam sobre elas sempre da seguinte forma: “Oh, mas ela tem um rosto liiiindo! só precisa emagrecer!” Mas não é esse o seu caso, Gil. Você não é só gorda. Você é feia! FEIA!
Lembro que eu estava muito incomodado, prevendo que o Dust estragaria o aniversário da Madalena. Festa bacana. Jantar gostoso, pessoas alegres. Até Dj a Madá contratou. Eu tentei intervir no papo, mas a mesa era grande e o Dust estava do lado oposto ao meu. Gil estava do meu lado. Cochichei duas vezes, no ouvido dela: “Deixa de papo com esse doido!”. Mas ela insistia. Que mulher!
- Dust, querido, você não sabia que beleza é um conceito relativo?
- Não acho não. Pra mim, isso aí é conversa fiada. É claro que há uma margem de subjetividade na questão da beleza, mas relativamente a qualquer padrão estético de referência existente, você é FEIA! Seu nariz é enorme, seus olhos são separados como os de um tubarão martelo, seus traços são grosseiros, você não tem bunda, seu corpo é quadrado e a sua gordura se acumula nos piores lugares possíveis pra uma mulher, te dando esses brações de baiana do acarajé. Até o seu nome é feio. Gildete. Nome de pobre, favelado. Aposto que o nome do seu pai é Gildo e o da sua mãe é Nete, ou Bete, ou Janete...
Mais uma vez, a gargalhada tomou conta da mesa. O Pezinho e o Chuck já choravam de rir... Eu fechei os olhos e esperei a merda acontecer. Daí comecei a mexer no celular, pra disfarçar o constrangimento que eu estava sentindo pela Gil, a qual, ainda assim, mostrava-se tranquila e simpática. Não sei o que a motivava, mas ela continuava lá, aparentando estar no controle da situação.
Ninguém está no controle quando lida com o Dust.
-Ha ha ha! Essa do meu nome foi boa! Querido, a beleza não é a coisa mais importante do mundo. Existem outras áreas da existência humana que são muito mais importantes do que a beleza física.  Existem vários exemplos de pessoas que não se adequam a padrões de beleza contemporâneos e são muito bem sucedidas, reconhecidas por sua competência, pelo seu valor. Existem pessoas que têm princípios, Dust. Existem pessoas que, como eu, não deixam que essas superficialidades afetem os seus princípios.
- Tá bom, Gil. Tá bom. Me dá um exemplo aí de uma pessoa, ou melhor, de uma mulher que suplantou essa questão, com sua competência, valor, princípio, ou seja lá que virtude for...
Neste momento, a atenção da Gil , assim como a de quase todos, voltou-se para a entrada do salão. Seu olhar mirou a cena com a precisão e apreensão de um atirador de elite. Seu rosto abandonou aquela serena e zombeteira expressão de tranquilidade, passando a emitir farpas de desespero. Ela abandonou os talheres do jantar e uma das suas mãos, trêmula e desesperada, levou o copo de whisky à boca. Gil virou de um só gole. Um filete escorreu pelo seu queixo.
- A A A NO-NOSSA presidente é um bom exemplo, Dust. U-U-Uma mulher que tem história, que lutou contra a ditadura, foi presa, foi torturada, deu a volta por cima e se tornou uma das mulheres mais importantes e poderosas do mundo.
- Bom exemplo, Gil. Ô Pezinho! PEZINHO! PEZINHO!!!
- Ôpa!!! Fala aí, negão.
- Você se casaria com a Dilma?
- Que Dilma? A presidente?
- Sim, Pezinho. Essa mesmo!
- Que nada, negão! A Dilma é feia pra caralho!
Às vezes, conversar com o Dust era como torcer pra um time cheio de craques que estavam em um péssimo dia e não acertavam uma jogada sequer. Ele parecia manter um hobby: perfilhar entendimentos levianos sobre assuntos complexos,  discutindo assuntos sérios de forma irônica e debochada. Mesmo assim, esse comportamento detestável acabava atraindo a curiosidade das pessoas.  Se o Dust fosse apenas um idiota, seria fácil ignorá-lo ou achar graça, mas as pessoas ficavam muito intrigadas com ele, visto que era um cara notável e nitidamente inteligente, ou melhor, genial. Perto dele, as pessoas sempre queriam ouvir mais, entender mais, observar mais, pois sentiam que estavam sendo conduzidas para um desfecho fantástico. Geralmente trágico, é claro.
- Dust, querido.... O-O-Olha com que grau ... GARÇOM! GARÇOM! POR FAVOR!!! ... Olha com que grau de estu-tu-tupidez você está tratando esse assunto. Você é inteligeeente... Sabe que esta forma de argumentar é ridícula e essa ideia que você está defenden...
- GIL, entenda uma coisa: eu não estou defendendo ideia nenhuma. Eu apenas estou des-cre-ven-do, entenda: DES-CRE-VEN-DO os valores predominantes na nossa socie...
Foi fácil identificar o que havia causado tamanho choque na Gil:
Deus havia acabado de chegar.
Acompanhado... Que engraçado... Todos achavam que, nesta festa,  um relacionamento tornar-se-ia público:  Gildete e Deusivaldo. Segundo a “rádio corredor”, eles andavam muito grudados desde que a Gil virou gerente regional e passou a conviver mais com os sócios da empresa (da qual Deus era o majoritário). Porém, Deus adentrou o salão acompanhado de uma bela jovem: Verônica, a nova recepcionista.
- MA-MA-MAS VOCÊ tem certeza de que esses valores são realmente importantes pra MIM? TEM CERTEZA de que eu realmente me inco-co-comodo com o fato de não ser uma mu-mu-mulher com traços físicos que não se enquadram em um padrão universal es-es-estúpido?
- Tenho!
Verônica, a nova recepcionista, havia sido indicada para o cargo pelo Dust. Era prima dele, na verdade. Dust adorava ela, no sentido familiar mesmo. Naturalmente, quando os funcionários mais “dispostos” ficaram sabendo disso, o procuraram, imediatamente, na tentativa de articular uma “prospecção”.
Dust mandou todos pro inferno.
- HA ha ha! Querido... E-e-existem homens... Tipo assim: HOMENS DE VERDADE!!! Que enxergam uma mulher como muito mais do que um pedaço de carne, como muito mais do que um rostinho harmônico encabeçando um manequim com peitos e bunda salientes. E-e-existem homens, Dust... HOMENS DE VERDADE!!! Ti-ti-tipo assim... Que sabem reconhecer e dar valor a uma mulher não pelo seu corpo, mas pelo seu caráter, pela sua inteligência, pela sua coragem. São poucos, Dust. Mas ELES EXISTEM E SÃO HOMENS DE SUCESSO!!!
-  Gil, o problema é a boa e velha natureza excludente do sucesso, que é basicamente a mesma da beleza. Esses seus homens bem sucedidos adquirem coisas que nem todos podem ter...
Deus e Verônica, a nova recepcionista, estavam sorridentes, animados, exuberantes. Cumprimentaram algumas pessoas e ocuparam uma pequena mesa, lá no cantinho do salão.  Verônica, a nova recepcionista, já chegou conquistando o título de comentário da festa. Seu corpinho curvilíneo, seu vestidinho coladinho e seu decote hipnótico fariam  o Pezinho levar dezenas de beliscões da Arlete, ao longo da noite.
- MAS que-que-querido, você sabe a definição de sucesso que é válida pra mim?
- Não precisamente. Claro. Mas te conheço o suficiente pra saber que essa sua definição de sucesso contém um aspecto que só lhe traz e continuará trazendo infelicidades, Gil.
- Por quê?
- Pois desvaloriza tudo que você é e conquistou com esforço e sacrifício, concentrando-se naquilo que o destino, o mero destino lhe atribuiu. Você é um pessoa especial, Gil. Sei disso. Mas algumas das suas principais convicções são tão rasteiras quanto as da maioria.  O SEU homem de sucesso procurará uma mulher de sucesso e o sucesso dessa mulher tem a beleza como um dos seus pilares. É um pacote, Gil, entenda. Olhe as propagandas de carros, de relógios, de imóveis... Aliás, olhe qualquer propaganda. Tem alguma mulher feia como você fazendo? Nãããão. Tem sempre uma mulher bonita. Um homem de sucesso compra um carro caro, mora em uma cobertura e tem uma mulher bonita e com sorriso de princesa. Em suma: você está fora do kit básico do sucesso que persegue!
Deus e Verônica, a nova recepcionista, já estavam na maior empolgação. Sorrisos reluzentes, olhares carinhosos e drinques coloridos. Deus já estava “cheio de mãos”, todo derretido, "com os quatro pneus arriados”. Mas Verônica, a nova recepcionista, se comportava de forma  discreta e contida. Ela sabia que uma vitória é mais saborosa quando envolve esforço. Esforço e sacrifício: tempo.
- Dust, vo-vo-você não me... GARÇOM!!! ...você acha que  me conhece ma-ma-mas... Eu sou uma mu-mu-mulher que tem princípios. Não me aba-ba-balo com essas superficialidades!
- Gil, eu não estou querendo dizer que essas “superficialidades” afetam os seus princípios. Seus princípios podem continuar inabaláveis, mas o mundo gira independentemente da sua vontade , dos seus princípios. Um princípio, na prática, não serve pra quase nada. Eu estou afirmando que essas superficialidades afetam VOCÊ! Viver em grupo implica em estar exposto às opiniões, preferências, atitudes e desejos dos outros. E o fato de os outros acharem você FEIA te afeta sim. E muito. Você também se acha feia e se incomoda com isso. Tanto é que tenta compensar na roupa e maquiagem, o que acaba piorando... Olha esse seu vestido, por exemplo,  parece que foi feito com toalha de mesa de cartomante. A sua maquiagem.. Meu Deus... parece com a da dupla Patati Pata...
Mais uma vez, as gargalhadas foram tão sonoras que nem deu pra ouvir o final da frase. O Pezinho se engasgou com a cerveja e não conseguia decidir se tossia, gargalhava ou vomitava de uma vez. A Gil continuava mantendo um sorriso no rosto, mas era evidente que isso estava sendo artificial e extenuante. Muito custoso. Era uma musculação facial e a fadiga já deixava esses músculos trêmulos. Pensei no quanto aquelas candidatas a miss isso ou aquilo devem treinar pra conseguir manter um sorriso no rosto por tanto tempo.
- DUST, DE-DEIXE DE SER IDIOTA!!! Você deve estar achando que sou superficial como as PUTINHAS E PIRIGUETES que você conhece! Eu sou u-uma mulher educada, sofisticada, culta. Eu não me importo se você, o Pezinho, o “nãoseiquenzinho”, o pessoal do trabalho ou a PUTA QUE TE PARIU me acham feia! Você acha meeeesmo que uma mulher como eu sofreria por conta de uma MERDA dessa?
- Hummmm... Não ACHO que sofreria... Eu tenho CERTEZA de que SOFRE. E está sofrendo NESTE EXATO MOMENTO.
Dust contextualizou essa última frase com uma expressão corporal dotada de um sarcasmo completo: franzindo a testa, , abaixando a cabeça meio de lado, coçando disfarçadamente a nuca com o dedo indicador e olhando na direção de Deus. Todos da mesa olharam naquela direção. Deus e Verônica, a nova recepcionista, estavam no meio de um beijo longo e cinematográfico, ao som de uma música envolvente, sensual, na voz da Shakira. Gil, sem virar a cabeça, deu uma olhadela que durou apenas um milésimo de segundo. Ela passou a falar baixinho, mas com a voz trêmula e carregada de ódio. Os lábios tão serrados que pareciam apenas um linha feita a lápis. Seus olhos brilhavam, molhados, suas mãos não sabiam onde se enfiar. À beira do abismo. Ninguém riu.
Yo soy loca con mi tigre
Loca, loca, loca
- E co-co-como você concluiu isso, querido?
- Eu já estou indo embora, Gil. Estou morrendo de sono...
- Ago-gora eu quero ouvir, Dust.
- Gil, você já bebeu demais. Eu acho melhor...
- Vo-vo... Vo... Você pode conversar comigo, querido. Eu estou tranquila.
Claro que o Dust não conseguiria conter o ímpeto de destruir a coitada de uma vez por todas, mas essa tentativa de esquiva evidenciava uma evolução. Pelo menos, ele demonstrou algum tipo de ponderação, talvez um esboço rudimentar de inteligência emocional. Seria até possível afirmar que nesta época da sua vida, o Dust passou a se preocupar, mesmo que de forma ínfima, com a integridade psicológica do outro (e física dele mesmo).
Soy loca con mi tigre
Loca, loca, loca
- Tá bom, Gil. Já que você insiste na conversa, eu quero te falar uma coisa: você pode achar que a Verônica é uma piriguete, putinha e tudo mais. Só que ela tem uma virtude, Gil, uma virtude básica, instintiva e visceral. Uma virtude que você, com todo seu conhecimento, estudo e sofisticação não possui, ou, se possui, não pratica. Ela entende, aceita e LIDA com suas próprias limitações. Conhece as vantagens e desvantagens de ser quem é. Ela mal sabe fazer uma conta de dividir com três algarismos, mas estudou muito as cartas que a vida lhe deu no dia do seu nascimento. Por isso, quando entra em qualquer jogo, entra pra ganhar.
Soy loca con mi tigre
Loca, loca, loca
- Que-que-quem aqui falou da sua prima, querido? Eu não dou a mínima pra sua prima. Quer dizer, a-a-até gosto de-de-dela. A-a-agora... Tipo assim... O que eu não aceito é que...

- GIL, o que você não aceita é o fato de que os homens prefiram a Verônica recepcionista de quatro do que você de oito com suas quatro pós...
Vocês podem não saber, mas muitos assassinatos acontecem com o uso de  garfos e facas, destes de cozinha mesmo. Pode dar um “google” que você vai ver.
Um assassino de garfo e faca deveria ter uma atenuante expressiva sobre as consequências do seu ato. Talvez um suporte psicológico. Uma cela especial. O assassino de garfo e faca é apenas uma pobre alma que experimenta o infortúnio de um tormento insustentável que o priva da capacidade de fazer ponderações. É uma pessoa comum movida por um  impulso tão visceral, instintivo e  incontrolável que a faria trocar toda a riqueza,  alegria  e  prazeres do mundo pela simples chance de esganar  seu desafeto, mesmo que isso a condenasse a uma eternidade de punições.
Quando a Gildete livrou-se dos saltos altos, eu imaginei que o Dust seria alvo de uma bela sapatada. Foi então que ela subiu na mesa, usando a própria cadeira como degrau...
Todos ficaram tão perplexos que demoraram a perceber que ela estava armada com um garfo e uma faca. Quando uma voz feminina gritou “ELA VAI MATAR ELE!” era tarde demais. A música cessou. Achei que o Dj já havia notado que ia rolar uma confusão. De repente, berrou uma sirene estrondosa... E a Anita começou:
Prepara
Que agora
É hora
Do show das poderosas

A Gil deu um passo curto sobre a mesa, na direção do Dust, que estava do outro lado,  mas, ao tentar o segundo passo, escorregou na toalha e projetou-se pra frente, caindo em cima dele. A cadeira espatifou-se. Dentre gritos, pratos e taças quebrando e pessoas correndo para apartar a briga, consegui ver que a Gil havia aplicado, certamente sem querer, uma posição muito conhecida no MMA. O Pezinho reconheceu isso e gritou “É UM MATA LEÃÃÃO!!!”
Solta o som que é pra me ver
Dan-çan-do

Deu trabalho pra arrancar a Gil de cima do Dust. Foram vários intervenientes. Ela se debatia como uma uma dessas garotas possuídas, dos filmes de exorcismo. Quando conseguiram sentá-la a força numa cadeira, a Arlete derramou um copo d’água na cara dela e deu-lhe alguns tapas em ambas as bochechas: “ACALME-SE, GILDETE! CONTROLE-SE!”.  Gil chorava e soluçava compulsivamente. Coitada.
Até você vai ficar
Ba-ban-do

Mas a maior preocupação era com o Dust. Ele estava muito zonzo, pois havia  batido forte a cabeça no chão e sofrido alguns ferimentos nos braços, defendendo-se das facadas e garfadas. Sentia muita dor. Foram necessários uns dez minutos para que ele conseguisse se levantar do chão.
Dust levaria três pontos no antebraço esquerdo.
Depois desta movimentada noite, a Gildete ficou uma semana em licença médica e foi destituída do cargo de gerente regional,sendo transferida, após algumas semanas, para São Paulo, como gerente de área. Pelo visto, Deus, que presenciara o incidente, não a perdoou pela insanidade.
O pessoal da empresa até criou um novo apelido pra ela: “Gil-Jitsu”. Além disso, volta e meia alguém brincava com o Tchutchuco, colega de trabalho religioso que praticava essa arte marcial: “Cuidado, Tchutchuco! Gil-Jitsu não é de Deus”.
Por falar em Deus, ele casou-se com Verônica, a recepcionista. Tiveram dois filhos e, da última vez que soube, moravam no Rio de Janeiro.
Dust hoje é casado e mora em Brasília. Nunca me telefona. Não tem facebook. Eu envio email, ele não responde.

Gildete continua feia.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Tio Zica - Parte 4

Guilherme era o cara. Ele desatava os nós.

Seu pai gostaria de registrá-lo com o nome de Wilhelm Von Hokonzellern. Mas, por questões políticas, veio a se chamar Guilherme mesmo. Além do mais, ninguém conseguiria falar “Wilhelm” direito no Brasil.

Zica o conheceu em São Paulo, bêbado em um cabaré. Isso foi logo depois que o tio atravessou uma grave crise pessoal, que culminou no que é considerado, pelos homens medianos, como um vasto conjunto de deficiências sociais, morais e comportamentais.

Guilherme é carioca, filho do velho Blitz.

O velho Blitz, diziam os camaradas, era velho de nascença. A primeira tentativa de assassinato que escapou foi a de infanticídio. Sua mãe, poucas horas após a gravidez, sufocou o velho com um travesseiro e suicidou-se em seguida, cortando os próprios pulsos com um bisturi que havia escondido sob o colchão. Apesar de ter passado minutos a fio sem respirar, o velho não morreu. Quando a enfermeira entrou no quarto, ele dormia como um bebê, sobre a barriga fria da sua mamãe.

Blitz é alemão nato. Foi membro do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores. Veio para o Brasil em 1935, adotando Blumenau como lar temporário. O seu objetivo aqui era empreender ações políticas e paramilitares para obter o apoio de líderes, empresas e formadores de opinião, visando à formação de um partido nazista alemão.

É pacífico afirmar que o velho Blitz alcançou grande sucesso em sua empreitada: Ensinou crianças descendentes de alemães a fazer a saudação nazista antes de entrar na sala de aula, “suicidou” autoridades que buscavam emperrar os interesses do Reich, comprou dezenas de servidores públicos e torturou e matou alguns espiões americanos que estavam se infiltrando no governo  Vargas.

O velho Blitz era bem instruído. Estudara em renomadas instituições, falava diversos idiomas e era obcecado pela causa e pelos ensinamentos nazistas. Para ele, era inaceitável que um alemão contaminasse sua linhagem com uma raça inferior. Porém, em 1937, durante visita ao Rio, descobriu a perfeita combinação entre um corpo com curvas acentuadas, gingado “ixperto” e uma ótima pitada de melanina. O velho Blitz não resistiu. Gostava da fruta. Fez o seu filho, Guilherme, com uma brasileira: Ana Clara, carioca safadinha.

Apaixonado pela Ana, resolveu morar com ela em uma casa comprada pelo seu partido. O velho ficaria instalado no Rio para participar do Levante Integralista, frustrado ataque ao Palácio Guanabara, em 1938. Apesar de não entender o motivo, Blitz havia recebido a ordem, aparentemente controversa, de assassinar o Getúlio. Entrou no combate convicto para cumprir sua tarefa, sem questionamentos e sem medo, como um grande soldado. Porém, sua missão não foi bem sucedida. Levou quatro tiros durante a insurgência. Escapou.

Pouco antes de a guerra estourar, o velho voltou para a Alemanha e lutou durante quase todo o período entre 1939 e 1945. O velho era osso duro: Levou oito tiros de fuzil na França, voou pelos ares duas vezes ao pisar em minas terrestres na campanha africana, foi capturado e torturado pelos russos em Stalingrado e os camaradas afirmam que ele teria sido atropelado acidentalmente por um Panzer, quando passeava bêbado, à noite, ao redor de seu acampamento. O velho Blitz nunca admitiu recordar deste acidente.

Voltou ilegalmente para o Brasil, em 1947, reencontrando a Ana e o Guilherme, que moravam em uma encosta que viria a ser parte de uma grande favela no Rio. Ana trabalhava em uma roça, que havia no morro. Vendia, em uma feira, as hortaliças cultivadas lá. Ganhava uma miséria. Já possuía quatro filhos.

Mesmo descobrindo que a Ana já tinha parido mais três moleques e que nenhum deles tinha pai registrado ou conhecido, o velho resolveu viver com ela. Inventaria um jeito de ganhar a vida. Em poucos dias, acabou inventando: Virou ajudante de pedreiro. O velho era inteligente e vigoroso. Um sobrevivente.

Sentia-se bem com a Ana. Pensou muito nela durante a guerra e ficou feliz ao encontrá-la. Chegou até mesmo a acreditar que a amava. Já havia ouvido falar sobre o amor. Seus companheiros moribundos falavam sobre o amor quando estavam prestes a sucumbir à pneumonia, em trincheiras frias e fedorentas. Os prisioneiros que fuzilou quase sempre faziam questão de declarar o amor por alguém, antes de morrer, como se suas últimas palavras tivessem o poder de viajar o mundo e agraciar o coração de suas esposas e filhos amados.

O amor sempre foi, para o velho Blitz, o último discurso de um homem. E ele queria muito possuir o direito de pronunciá-lo.

No entanto, Ana havia mergulhado no álcool, nas drogas e na amargura de uma vida repleta de escassez e solidão. Sua mente estava estilhaçada. Seu único pensamento era conseguir dinheiro para fomentar os seus vícios.

Depois da guerra, o velho Blitz nunca mais conseguiu dormir durante uma hora ininterrupta. Ouvia gritos, sentia a iminência de explosões, tinha pesadelos horríveis. Até mesmo o ruído de um grilo a quilômetros de distância era suficiente para acordá-lo. Ana não sabia, mas as noites do velho custavam a passar.

Uma certa madrugada, após apenas algumas semanas da sua chegada, o velho viu a Ana levantar-se da cama e, estranhamente, sair de casa. Olhou o relógio na parede. Três da manhã, em ponto. O velho foi até a janela da sala e contemplou, estarrecido, o mais triste cenário de devastação da eterna guerra que era a sua vida.

Ana conversava com três homens. Policiais. Um dos homens carregava um pacote. Ao ver o embrulho, Ana esticou acintosamente os braços para pegá-lo. Outro homem a segurou, de forma agressiva. Um deles abriu o envelope e exibiu o conteúdo. Dinheiro. Ela apontou para a casa. Os homens sacaram revólveres e se dirigiram para a porta da frente. O velho estava preparado. Sempre estava. Enganar a morte era seu maior talento e dizer adeus sem hesitação era seu “modus operandis”.

Na guerra, o velho Blitz aprendeu a elaborar mentalmente uma rota de fuga em qualquer lugar aonde chegasse. Era a primeira coisa que fazia ao acampar. Sabia que, sem qualquer ensaio, a sinfonia da destruição começaria a tocar. Dissonante e descompassada.

Quando as farpas de morte começassem a chover sobre as miseráveis vidas dos seus, tinha em mente exatamente o que precisava pegar e que caminho seguir. Não tentava salvar camaradas mutilados. Não carregava mais do que o essencial. Não olhava para trás. Assim ele sobreviveu.

A diferença é que, desta vez, além de uma pequena mochila que estava sempre pronta, levaria um ser humano. Um que não podia se cuidar sozinho. Não abandonaria sua linhagem. Mesmo que contaminada.

Carregou o Guilherme, abafando sua boca, e saiu furtivamente pela porta dos fundos, fechando-a cuidadosamente, em seguida.

Correu. Ouviu um dos homens gritar. Balas começaram a zunir ao seu redor. Correu. Primeiro beco à esquerda, segundo à direita, escadaria de barro, beco à esquerda, seguiu a trilha de um esgoto a céu aberto e saiu do morro. Escondeu-se em uma moita para respirar. Percebeu o pijama do Guilherme encharcado de sangue. Despiu o moleque. Procurou os furos. Ufa. Nenhum.  Abraçou o seu filho. Começou a sentir dor. Foram duas balas. Uma havia atravessado o seu ombro e a outra estava alojada entre suas costelas.

Já na avenida principal, arrombou uma caminhonete estacionada em frente a uma loja de materiais de construção, destravou o freio de mão e deixou que ela descesse um declive por alguns metros, até um local mais isolado. Colocou o Guilherme no carona, fez a ligação direta (cortesia dos conhecimentos adquiridos na guerra) e partiu.

O velho conhecia os acessos, as ruas, as rodovias. Estudar o ambiente onde estaria era prática consolidada de sua movimentada vida.

Esperto, resolveu ir morar no interior de Minas Gerais, pois a perseguição aos nazistas no Rio estava muito intensa. Instalou-se em Tumiritinga, cidadezinha humilde, no extremo leste do estado.

Em Tumiritinga, o velho vinha prosperando com a criação de porcos: “Fácil criarrrr porrrrcos neste porrrcaria de país!”. Vivia dizendo ironicamente ao Guilherme, com seu português precário.

Além de ter como passatempo ensinar coisas nazistas para o seu filho, o velho Blitz também mantinha um tímido convívio social, apenas com Tunico, coroa mineirinho que abatia e revendia a maior parte dos porcos do velho em seu açougue (“Açougue do Tunico”). O velho levava seus porcos na sexta-feira à tarde, e, depois de fechado o negócio, ia tomar pinga e jogar sinuca com o Tunico no bar do Tição, que ficava em frente ao açougue.

Na verdade, o velho Blitz estava interessado na Analice, filha do açougueiro. Analice era uma jovem de dezoito anos, cheia de sonhos, safadinha. Ela trabalhava no açougue do pai e, antes de conhecer o velho, não havia sequer beijado na boca. Tunico não deixava nem mesmo ela sair de casa sozinha: “Minha filha vai pá capitá ixtudar! Vai casá com um homi ixtruído, ixtudado. Num tem homi bão pá minha filha nessa terra aqui!”

Analice estava apaixonada pelo velho Blitz, o qual ainda era jovem, grandão, loirão e bonitão.

Tição, o dono do bar, era nascido na Bahia e não amava o velho Blitz: “Vixe! Lá vem aquele italiano de merda! Inda meto a mão na cara desse safado!”

Tunico até que simpatizava com o velho: “Ele num é italiano não, home. É das Eoropa. Ele me vende os pôrco barato. Ele gosta de nóis!”

Tição, na verdade, odiava o velho: “Oxente?! Ouvi ele te dizê que nordestino é tudo cabeça de coco e que os preto tinha é que queimá na fuguêra!”

O Tunico gostava mesmo do velho: “Dêêêxe de bobage, homi. É de brincadêra. O galego é um cabra bão!”

Mas o Tição queria arrumar uma encrenca: “Fique aí puxando o saco desse branquelo! Ele tá mermo é de olho na sua minina. Já vi duas vez ele aparecê aí no seu açôgue quando você num tá!”

Tunico agora queria o velho morto: “E É? AGORA QUE VOCÊ AVISA? VOU ARMAR UMA ARAPUCA PÁ ESSE MISERÁVE!”

Tarde demais. O velho Blitz já havia deitado e rolado – literalmente - com a garotinha. O velho era eficiente. Gostava da fruta.

Na manhã da segunda-feira da semana seguinte, Tunico saiu, como sempre fazia, fingindo que iria comprar gado em Linha do Vale, vilarejo próximo. Após algumas léguas na estrada, parou sua velha caminhonete e voltou de carona, por uma trilha escondida, no cavalo do Tição, que o esperava com uma espingarda a tiracolo:

- Tunico! Tu mira bem na caixa dos peito do safado!
- XÁ CUMIGO! SE AQUELE MISERÁVE TIVER BULINANO MINHA MININA, EU VÔ ARRANCÁ AS TRIPA DELE E DÁ PROS PÔRCO CUMÊ!

Chegaram sorrateiros pela porta do fundos. Analice ouviu os passos dos dois e falou baixinho pro velho:

- Corre, Blitz! Vem gente aí...

O velho vestiu às pressas sua camisa e correu, ainda abotoando as calças. Correu apenas porque sabia que era o combinado. O velho Blitz não sentiu medo. Como o perigo da aproximação era sempre pela entrada da frente, o velho correu pelos fundos. Ao abrir a porta, deu de cara com o Tunico e o Tição:

- Tá veno, Tunico? Eu te disse que esse fiduma égua tava aprontando com sua minina!
- EU TE MATO, MISERÁVI!!!

O velho Blitz abriu os braços, estufou o peito (as calças caíram) e falou convicto:

- Atirrrra, caipira! Atirrrra e mata! Ou eu mata você e cabeça de coco torrrrado!

Tunico tremia e soluçava. Os olhos sibilavam em lágrimas. Nunca havia matado um homem na vida. Analice chorava debaixo do balcão da máquina registradora, com as mãos nos ouvidos.

- Maaata esse discarado, Tunico! Mira nos peito. Como eu te insinei!!!
- Ê... Ê... Eu vô matá, homi! Péra que eu mato!!!

O dedo do Tunico nem chegava ao gatilho e a espingarda já estava prestes a cair, de tanto que tremia. O velho Blitz, percebendo a covardia do mineirinho, provocou:

- Dá arrrrma para cabeça de coco. Querrrr verrr se tem courage de atiraaarrrr! O prrrrobema deste espingarrrrda é que...

POW!!!

Tição havia tomado a espingarda da mão do Tunico e dado um tiro bem no peito do Blitz. O isqueiro de metal do velho estava no bolso esquerdo. O isqueiro era de zinco, muito duro, quase impenetrável.

O tiro atingiu o peito da direita.

O velho Blitz caiu de costas, dentro do estabelecimento. A bala atravessou e quebrou a janela da frente do açougue. Analice desmaiou. Tunico e Tição se aproximavam do corpo, curiosos e amedrontados, quando, de repente, o velho se levantou, resmungando:

- O prrrrobema deste espingarrrrda é que dá só um tirrrro e tem que recarrregarrr!

Tição livrou-se da arma, berrou “VIXE MARIA!!!!” e partiu em disparada. Tunico já estava a uns cem metros de distância. O velho Blitz foi atrás, mas se embaraçou nas calças que estavam enganchadas nos seus pés e desabou no chão. Resolveu desistir da perseguição:

- Eu vai emborrrra desta lugarrrr. Até a guerrrra é melhorrr do que este terrrra infame.

O Velho saiu andando na direção da sua casa, deixando um rastro de sangue pelo caminho. Não sentia dor. Não sentia tontura, por conta do sangue que perdia. Mas, pela primeira vez, sentiu vontade de morrer. Depois de ter escapado de tantas pessoas que tentaram tirar sua vida, durante toda ela, estava convencido de que apenas ele mesmo poderia fazê-lo. [continua]

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Tio Zica - Parte 3

- ...aí eu peguei um peixe que era deste tamanho aqui!

- Sério, Tico?

- Sério, tia Zuzu! Pergunta ao tio Zica. Era bem grande mesmo. Maior do que a Chun-li. O tio Guilherme disse que nem sabia que tinha peixe daquele tamanho lá na lagoa dele...

- Mas você conseguiu tirar ele da água sozinho?

- Siiiim. O tio Zica me ensinou a deixar o peixe cansado. Você sabia que o peixe fica cansado também? É que nem os cachorros! Quando eu brinco com a Chun-li, ela fica tão cansada que deita no... Peraí... Meu telefone... Oi, mãe! .... Também amo você...Que presente, mãe? ...O tio Zica ainda não acordou... Não sei... Peraí... Tia Zuzu, que horas o tio Zica levanta?

- A Tica sabe que ele não sai da cama antes das nove, porque acordar cedo é coisa pra otário.

- Mãe, tio Zica só... Tá bom... Tia Zuzu, ela quer falar com o tio Zica agora...

- Vai lá chamar! Às vezes ele acorda e fica na cama lendo.

- Peraí mãe... TIO ZICA! POSSO ENTRAR? TIO ZICA!!! MINHA MÃE QUER FALAR...

- En... En... Entra, Tico!

- Toma! Minha mãe!

- Fala, Tiquin...

- VOCÊ já deu os presentes pro Tiago?

- Calma, Tica. Quando eu sair da cama vou dar. Comprei um negócio que ele vai...

- ZICA, PRESTE ATENÇÃO! A caixa maior tem um X-Box que eu comprei pra ele. Mas minha colega, que trouxe dos Estados Unidos, me alertou aqui que filho dela danificou o aparelho quando foi ligar pela primeira vez, pois a voltagem daí é diferente e...

- TICA, que negócio é esse de caixa, de X-Box, de Estados Unidos?

- Tou falando dos nossos presentes! O meu e o do Murilo!

- Seu presente? Presente do goiaba do seu marido? Não sei nada sobre este assunto...

- O MOTORISTA DO MURILO DEVE TER DEIXADO AÍ ONTEM! É QUE A GENTE TAVA LÁ EM CALDAS. ESTARÍAMOS DE FOLGA COM O TICO LÁ HOJE SE NÃO TIVESSE SURGIDO ESSA MALDITA VIAGEM DE ÚLTIMA HORA...

- Tiquinha. Eu não tô entendendo nada. Pare de gritar, respire calmamente e explique direito isso aí.

- Tááááá bom... Após dééééécadas de trabalho, conseguimos tirar uma droga de folga, em uma poooooorra de segunda-feira, para passar o aniversááááário de nosso filho no parque aquático que ele adoooora...

- CALMA, Tiquinha....

- ... levaaaaamos os presentes, que eeeeeu comprei sozinha, para darmos hoje ao Tico. Mas uma merda de um velho fudido resolve viajar pro inferno em pleno sábado à noite e, por isso, eu tive que voltar pra casa mais cedo, pra arrumar meus panos de bunda e vir pra São Paulo, pois o Murilo tem que participar de uma reunião daqui a pouco com uns filhos da puta que vieram lá da China pra fechar um negócio escroto, e eu, como a única porra de diretora viva dos programas sociais daquela merda, vou ter que substituir a viúva velha, dando uma palestra que inventaram...

- Tiana, pelo amor de Deus....

- ...aí o Aroldinho, motorista do Murilo, deixou a gente em casa ontem à tarde e, acredito eu, teria ido aí deixar os presentes do Tiago, pra não estragar a surpre...

- TÁ BOM! Tá bom! Tá bom! Só um instante... Tico, chama ali a Zuleide... Ontem eu não estava em casa mas a Zu... Zuzu, você recebeu alguma encomenda ontem?

- Não, seu Zica. E eu passei o dia aqui.

- Hummmm... Tica, não recebemos nada.

- MAS NÃO É POSSÍV... MURILO!!! MURILO!!! O ZICA TÁ DIZENDO QUE NÃO RECEBEU OS PRESENTES!!! ..... COMO ASSIM "QUE PRESENTES"?... VOCÊ SABIA QUE TEM UM FILHO? E QUE HOJE É ANIVERSÁRIO DELE? ...LEMBROU?...TÁ LEMBRANDO?... NÃO PODE SER!... MAS EU TE PERGUNTEI NO CARRO! VOCÊ RESPONDEU "SIM, PEGUEI"... ONDE? NO HOTEL? QUE DROOOGA...

- Tiquinha, tou desligando aqui... Tico, já tomou café?

- Não, tio Zica! A tia Zuzu tá fazendo daquelas panquecas que eu adoro e aquele milk-shake de Ovomaltine, que é melhor do que o do Bob's.

- Fala pra ela fazer pra mim também. Já que me acordaram de madruga...

- SEU ZICA, TELEFONE! É A DONA TIANA!

- Isso deve ser um pesadelo... TOU INDO!

...por isso nossa reportagem virou a noite no hospital. Durante a madrugada, não havia médicos das especialidades de ortopedia e cirurgia, por isso, muita gente que chegava na emergência teve que procurar atendimento em outras unidades. A população está revoltada com a situação da saúde. A redação tentou entrar em contato com a diretora mas...

- Fala Tiquinh...

- ZICA, você vai passar o dia lá no sítio do Guilherme, não é?

- Sim, vamos passar o dia pescando, à noite vamos pra casa do Bina jogar Paintball e ainda temos que ver o filme do Senhor dos...

- ESCUTE! O Aroldinho, motorista do Murilo, está indo lá em Caldas pegar os presentes do Tico pra levar lá no Guilherme. Ele vai telefonar pro celular do Tico quando estiver perto...

- TICA, lá nem pega celular...

- AH, Droga! Havia esquecido disso... Tudo bem! Se ele chegar lá e vocês já tiverem ido embora, peço pra ele deixar aí em sua casa mesmo. Lá seria mais perto pra ele... Que chato! Hoje é o primeiro dia de férias do rapaz! O coitado tá lá na casa da família em Luziânia e é longe pra...

...falamos agora com o secretário de transportes, que responderá aos questionamentos sobre a situação crítica em que se encontra o transporte público no DF:
- Senhor secretário, quais são as medidas que a gestão do atual governo buscará adotar para melhorar a vida do cidadão que utiliza o transporte público na nossa capital?
- Vamos adotar um conjunto de ações integradas e complementares que garantam...


- HAHAHAHA! Gostei desta!

- ZICA! Você está ouvindo o que eu estou falando?

- Claro! Você está adotando um conjunto de ações integradas e complementares que garantam que o presente do seu filho seja entregue de forma tempestiva...

- ZICA! Se eu estivesse aí agora, juro que arrancaria sua cabe...

- TIQUINHA... Eu já entendi tudo. Agora tenho que desligar, pois tenho muito o que fazer hoje. Beijo... TICOOO! Vá pegar o presente que comprei pra você! Tá lá no meu quarto, do lado da cama!

- ÊBAAAAAA! Tou indo lá pegar!

...continua a greve dos professores. Estudantes das escolas públicas farão manifestação hoje, na Esplanada dos Ministérios, para protestar contra a precariedade da encontra a educação, o que tira a oportunidade de....

- Seu Zica, o café tá na mesa...

- TIO ZICA, QUE LEGAAAAAL!

- Hehehe! Gostou?

- ADOREI! OLHA COMO FICOU MANEIRO!

- Cadê a arma, Tico? Você não viu? Pega lá! Deve estar embaixo da cama...

- CARAMBA! TEM ARMA TAMBÉM? OBAAAA! VOU LÁ PEGAR....

- Seu Zica, aquela fantasia é de quê?

- Aquilo é uma armadura de Paintball! Esse garotinho ficou louco quando vimos isto em uma vitrine há um tempo atrás!

...Novo Hyunday Azera, o carro de um bilhão de dólares. Um sedã de luxo inesquecível. Tecnologia, desempenho e luxo muito além do que existe no mercado. O lançamento mais grandioso...

- TIO ZICA! OLHA SÓ QUE LEGAL ESSA METRANCA! NÓS VAMOS JOGAR PAINTBALL HOJE, NÉ?

- Vamos sim, Tiquinho!

...e agora as oportunidades pra você que está à procura de emprego: Auxiliar de pedreiro, primeiro grau completo, duas vagas em Taguatinga, salário de 655 reais. Cozinheiro, primeiro grau completo, uma vaga no Plano Piloto, salário de 780 reais mais vale transporte...


- Zuzu, Por que você assiste a esta porra, hein?

- Seu Zica, a dona Tiana já falou pra o senhor não ficar falando palavrões na frente do Tico. O senhor sabe que ele repete lá na casa dele o que escuta aqui...

- Tá bom, mas dá pra gente tomar café sem televisão?

- Seu Zica, eu quero ver as notícias...

- Mas todo dia são as mesmas notíc... Olha aí agora que animador:

Agora, pra você que está saindo de casa, vamos ao nosso Radar: Ônibus quebrado deixa o trânsito lento na Estrada Parque...

- Hehehe! Esta é a melhor parte: Todo dia este jornal informa ao otário que sai de casa que, além de ele ter que desperdiçar o dia na frente de um computador, tem que enfrentar horas em um engarrafamento pra fazer isso... Sem TV, Zuzu! Clique!

- Tio Zica! Com esta arma eu vou ganhar todas as partidas!

- Mas você já ganha todas, Tico!

- Mas agora eu vou ganhar mais! Tio Zica, vamos logo pescar pra poder a gente ir depois pro Paintball.

- Mas Tico, o Paintball é só à noite!

- Mas a noite só vem depois que a gente acabar de pescar. Então vamo pescar logo!

- Relaxe aí, Tico! Olha lá: Tá tudo engarrafado... Vamo tomar café, jogar uma partidinha de videogame e depois a gente sai. Vou ganhar uma de você!

- Tá bom, tio Zi... PORRA! A arma disparou sem querer!

- Tá vendo, seu Zica?

[continua]

quinta-feira, 29 de março de 2012

Tio Zica - Parte 2

- Tio Zica, que dia nós vamos jogar paintball?

- Amanhã à noite.

- Tio Zica, você sabia que eu tenho uma namorada?

- Sério? E você já namora? Qual é o nome da garota?

- Tâmara. Mas ela ainda não sabe não. Eu vou falar pra ela no dia dos namorados. Falei com minha mãe que quero comprar um anel bem bonito pra dar de presente e... GOL!!!!

- Caraca! Você ganhou novo! Não entendo como é que você nem presta atenção no jogo e ainda joga tão bem!

- Tio Zica, nós vamos mesmo jogar paintball amanhã?

- Sim.

- Na casa do Bina, né?

- É.

- Eu falei com meu pai pra fazer um campo de paintball como o que tem na casa do Bina, mas ele disse que o espaço lá de casa é muito pequeno. O Bina disse que o espaço lá em casa dá pra fazer e disse também que o pai dele falou que meu pai não faz porque é um escroto e não liga pra... GOL!!!

- Rapaz!!! Como é que você fez este, hein? Do meio do campo...

- Tio Zica, eu pedi pra minha mãe me dar um cachorro de aniversário. Queria um cachorro bem grande, maior que a Chun-Li. Sabe o cachorro daquele filme de super herói que a gente viu na semana passada? Eu quero um igual àquele. O problema é minha mãe. Ela disse que cachorro tem ácaro, que são uns bichos "micocróspicos" que fazem mal. A minha namorada tem um cachorro e me disse que... GOL!!!

- Tico. Vamo tentar uma coisa nova? Vamo jogar uma partida caladinhos?

- Hummmm... Tá bom, Tio Zica. Mas não pode falar nada mesmo? Nem quando fizer um gol?

- Tá certo. Só pode falar “gol”, tá bom?

- Então tá!

- .....

- .....

- .....

- GOL!

- ....

- GOL!

- GOL!

- Caraca! De novo!!!

- Tio Zica, você falou...

- Tá bom, desculpa...

- GOL!

- GOL!

- Perdi de novo... Tico, você não estuda não? Fica só jogando esse treco em casa?

- Não, Tio Zica. Quase não dá tempo. Só posso jogar no final de semana porque minha mãe não... Olha! O telefone!

- Vou atender...

- Tio Zica, eu posso comer, né?

- Come aí um quilo de chocolate, já que ganhou umas dez partidas... Alô!

- Zica, é a Pati. Seguinte: Eu e a Lulu estamos indo no Pontão daqui a pouco. Hoje é aniversário de uma colega da academia. Vamos?

- Pati, hoje não posso sair. Estou aqui com o...

- NÃO ACREDITO que você vai deixar de sair comigo pra ficar em casa mexendo naquela mulher dos peitos caídos!!!

A mulher dos peitos caídos, citada pela Pati, é um quadro que o Zica vem pintando há uns 4 meses. É, para ele, uma das melhores pinturas que já fez e aquela que vem te trazendo mais ansiedade. Às vezes, acorda com grandes idéias para os próximos traços. Outras vezes, acredita com toda convicção do mundo de que sua obra já está pronta e que qualquer pingo de tinta adicional irá destruí-la.

Neste momento, Zica lembrou dos motivos pelos quais entrou em colapso algum tempo atrás: Andou com as pessoas erradas, freqüentou os lugares errados, viveu uma rotina que não escolheu direito, deixou a vida o arrastar.

Lidar com a ignorância e a leviandade das pessoas durante tantos anos quase o levou à morte. É plenamente aceitável que alguém se realize com carros novos, com jantares em restaurantes chiques, com televisores 3D ou com viagens para Paris, para Londres, para Nova York ou para a puta que o pariu. Mas espere que aceitem que uma maldita pintura de uma mulher do peito caído seja fonte de satisfação para um indivíduo...

É fácil cuspir na cova daqueles que não encontraram o que os completasse neste mundo. É fácil dizer "Oh! Mas ele tinha tudo do bom e do melhor e mesmo assim se destruiu!", "Oh! Mas era rico, famoso, dormia com quem quisesse e ainda assim se envolveu com drogas!", "Oh, mas ela tinha uma família maravilhosa e abandonou tudo pra viver uma vida solitária!". Difícil mesmo é ter que pertencer ao público-alvo deste apedrejamento. É não achar graça nenhuma no que os que te rodeiam consideram maravilhoso. É presenciar todos dizendo que você tem tudo quando, na verdade, você não tem nada.

Diante de tudo isso e por uma questão real de sobrevivência, Zica, convencido de que não conseguiria aceitar o mundo como ele é, necessitou adotar uma postura completamente diferente:

O mundo que me aceite como eu sou!

- Pati, é isso mesmo! Pra mim é muito mais proveitoso passar um mês pensando naquela mulher dos peitos caídos do que ter que aturar sua ladainha infame durante horas só pra apalpar os seus peitinhos consistentes. Um beijo!

- Tio Zica, a Chun-li tá comendo uma caixa de chocolate inteira, olha lá!

- Caraca, Tico! Você não viu ela pegando a caixa em cima da mesa? Essa cachorra vai me dar trabalho amanhã... CHUN-LI!!!! VAZA!!!!

- Tio Zica, a gente ainda vai jogar?

- Claro, eu só durmo depois de ganhar uma de você!

- Oba! Vamo jogar outro jogo agora! O de corrida!

- Pode botar, trombadinha! Esse eu sei que eu ganho! Já tenho mais de 10 anos de carteira e você nem alcança o acelera...

- Tio Zica, o telefone tá tocando!

- Deixa tocar. Estamos ocupados...

- Tio Zica, amanhã a gente vai jogar Paintball?

- Tico, eu já falei que sim duas vezes. Porquê você pergunta toda hora a mesma coisa?

- Desculpa, Tio Zica. É que minha mãe me ensinou a fazer isso com meu pai. Ela disse que se eu não ficar toda hora perguntando, ele não faz o que me prometeu.

- E funciona?

- Nunca funciona! Uma vez ele disse que ia me buscar na escola pra gente jogar boliche, eu perguntei várias vezes e ele me disse que ia, mesmo assim ele não foi. Outra vez ele disse que ia levar eu e minha mãe no Paintball mas não foi. Teve também a vez que ele disse que ia assistir os três filmes do Senhor dos Anéis comigo e não assistiu. Mas minha mãe me disse que ele tem um trabalho muito importante e que por isso...

- MAS VOCÊ não assistiu ao Senhor dos Anéis?

- Não. Meu pai disse que queria assistir comigo...

- Vamo assistir então. Essa semana eu compro o DVD.

- Lá em casa tem, Tio Zica. Minha mãe comprou. A Altina tá lá. A gente pode pegar.

- Relaxe. É melhor eu comprar outro. Tico, seu carro é melhor que o meu!!!

- Não é não, Tio Zica! O seu também é Porsche!

- Mas o seu deve ser mais novo! Olha lá! Meu carro não corre nada! Deve estar com problema na caixa de marcha...

- Êba!!! Cheguei em primeiro! Vou comer mais chocolate...

- Vamo outra! Agora eu vou pegar um fusca turbinado!

- Tio Zica...

- Hum?

- Deixa pra lá...

[continua]

quinta-feira, 15 de março de 2012

Tio Zica - Parte 1

- Tio Zica, podemos ir lá na casa do Bina hoje?

- Não vai dar, Tico. Hoje é domingo e já é tarde. Vamos pra casa jogar Playstation.

- De boa! Você comprou chocolate?

- Ta aí no banco de trás. Mas você vai ter que ganhar de mim pra comer, seu trombadinha!

- Tio Zica, a gente vai pescar?

- Claro! Amanhã.

- E a tia Ivana vai?

- Não, Tico. Amanhã é segunda-feira. Os trouxas trabalham.

- Ah é! Tio Zica, quase que meu pai não deixava eu vir. Eu ouvi ele dizendo pra minha mãe que você é “mau influência”. Eu perguntei pra minha mãe o que é isso e ela disse que eu não devia dar ouvidos ao meu pai. Ela também disse que não era pra eu te falar que meu pai disse que você é “mau influência”...

- Não é “mau influência”, Tico. É “má influência”! Seu pai quis dizer que você não devia andar comigo, pois ele acha que eu só te ensinaria coisas ruins. Seu pai acha que eu sou do mal, entendeu?

- Ele também disse que você é maconheiro e que cheira farinha. Aí minha mãe disse que ele não devia falar de você, pois ele é um bêbado. Minha mãe também disse que por isso ele nem comparece mais. Foi a maior briga.

- Quando foi essa confusão, Tico?

- Agora mesmo. Quando eu saí, eles ainda tavam brigando. Eles brigam todo dia.

- Tico, seu celular!

- É minha mãe... Oi mãe! Sim. Tá certo. Eu trouxe o... Tudo bem, mãe. Vou passar pra ele. Tio Zica, ela quer falar com você.

- Diga, Titica!

Ainda era bom ouvir a voz de Tiana. Por ter tão poucos momentos de convívio na fase adulta, sempre que falava com ela, Zica se lembrava da infância e adolescência deles. Tica e Zica eram uma dupla barra pesada. Aprontavam horrores...

- Zica, pelo amor de Deus, tenha cuidado com este menino! Lembre de dar as vitaminas no horário e não deixe que ele tome chuva, pois estava resfriado há alguns dias. Eu coloquei na mochila dele o... O QUE É, MURILO? SUA MALA TÁ NA SALA! ONDE VOCÊ DEIXOU!

Quando Tiana falou sobre as vitaminas, Zica lembrou-se do dia do aniversário da vovó Mandica, na casa dela. Ele e Tica atiraram pela janela do quarto todos os remédios que ficavam guardados no guarda-roupa da velha, tentando acertar um gato que andava em um terreno baldio, ao lado do prédio.

- ...não deixe ele ficar brincando com aqueles seus cachorros, pois eu li uma reportagem na internet... Só um instante... O TÁXI CHEGOU HÁ HORAS!!! VOCÊ AINDA VAI VIAJAR, MEU BEM? QUE DROGA!

Outra lembrança que fazia o Zica rir era a do dia em que eles grudaram vários chicletes mascados no cabelo da Alice, priminha vaidosa que vivia se penteando e se pintando, com aquelas maquiagens para criança, que eram vendidas na época. Zica nunca mais havia visto aquele tipo de brinquedo... Talvez ele não existisse mais... Quem sabe? Tanta coisa andou mudando em todos estes anos...

- ...cuidado quando for pescar, Zica. Não deixe o Tiago sozinho em momento algum. Leve água mineral e suco, pois ele NÃO bebe cerveja. Como você é a única pessoa deste planeta que não possui um aparelho celular, mantenha o aparelho do Tico carregado. Não se esqueça disso. Eu enviei todas as orientações via email e...

Zica, que já nem prestava mais atenção ao que Tiana falava, começou a mexer no som do carro, navegando nas pastas do seu pendrive em busca de uma música.

-...além disso, não deixe o Tiago ficar assistindo TV a cabo sozinho até tarde, pois em alguns canais que são “inofensivos” durante o dia, começam a passar filmes pornô. Outro dia ele estava assistindo ao Multishow e...

Marco se n'è andato e non ritorna più/ E il treno delle 7:30 senza lui/ È un cuore di metallo senza l'anima/ Nel freddo del mattino grigio di città

-...ZICA!!! DEIXE DE BRINCADEIRA E ABAIXE ESTE SOM...

- Meu fofo... Estou escrevendo mais esta cartinha para te dizer o quanto meu coração fica apertado sem você...

- HAHAHA! SEU IDIOTA!

- ...e que eu penso o tempo inteiro em te encontrar novamente, te tocar, te sentir...

Chissà se tu mi penserai/Se con i tuoi non parli mai/Se ti nascondi come me/Sfuggi gli sguardi e te ne stai

- EU DEVO SER LOUCA MESMO PRA DEIXAR MEU FILHO COM VOCÊ!

Mas agora Tiana falava sorrindo. Prendendo uma gargalhada. Ela se divertia muito com o irmão. Ele sabia que essa chacota sobre a adolescência dela era vencedora.

Quando ela se apaixonou pela primeira vez foi, segundo o Zica, insuportável. Passava o dia inteiro ouvindo Laura Pausini e escolhendo papéis de carta para escrever aqueles versinhos ingênuos e repetitivos para um pirralho da escola, seu grande amor. Antes de entregar os versos ao rapaz, ela passava para o Zica ler e dizer o que achava deles. O Zica, que é alguns anos mais velho que Tiana, achava aqueles bilhetinhos extremamente enfadonhos, mas fazia questão de lê-los. Era um irmão atencioso e companheiro.

Rinchiuso in camera e non vuoi mangiare/Stringi forte a te il cuscino/Piangi e non lo sai quanto altro male ti fará...

- Titica, eu te amo e vou dar ao seu filho o melhor aniversário que ele teve na vida, mas não posso mais conversar agora. Tá meio barulhento aqui. Vou ter que desligar!!!

- ABAIXE ESTE SOM, SEU...

- tu tu tu tu tu tu tu...

Tiana ria muito. Seu rosto já estava trêmulo e dolorido. Foi pegar sua bolsa na cozinha cambaleando de tanto gargalhar. Lembrava daquelas coisas da adolescência com vergonha de si mesma. Achou engraçado que o Zica não se lembrava de um detalhe tão relevante para sua chacota, que era o fato de que ela borrifava perfume nos bilhetes, e ele ainda ajudava a escolher qual o cheiro que melhor "combinava" com o texto.

Seus olhos se encheram de lágrimas e, ainda rindo, sentou-se no chão frio da cozinha escura e começou a chorar. As gargalhadas foram virando soluços sufocados de tristeza, enquanto ela encostava as costas na geladeira e apoiava a cabeça sobre as pernas dobradas.

Chorava como uma adolescente desiludida, tentando fingir não saber o motivo para estar se sentindo tão desesperada. Lá fora, seu marido a esperava impacientemente, pedindo para o motorista do taxi continuar buzinando.

...la solitudine


[continua]