quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Tio Zica - Parte 4

Guilherme era o cara. Ele desatava os nós.

Seu pai gostaria de registrá-lo com o nome de Wilhelm Von Hokonzellern. Mas, por questões políticas, veio a se chamar Guilherme mesmo. Além do mais, ninguém conseguiria falar “Wilhelm” direito no Brasil.

Zica o conheceu em São Paulo, bêbado em um cabaré. Isso foi logo depois que o tio atravessou uma grave crise pessoal, que culminou no que é considerado, pelos homens medianos, como um vasto conjunto de deficiências sociais, morais e comportamentais.

Guilherme é carioca, filho do velho Blitz.

O velho Blitz, diziam os camaradas, era velho de nascença. A primeira tentativa de assassinato que escapou foi a de infanticídio. Sua mãe, poucas horas após a gravidez, sufocou o velho com um travesseiro e suicidou-se em seguida, cortando os próprios pulsos com um bisturi que havia escondido sob o colchão. Apesar de ter passado minutos a fio sem respirar, o velho não morreu. Quando a enfermeira entrou no quarto, ele dormia como um bebê, sobre a barriga fria da sua mamãe.

Blitz é alemão nato. Foi membro do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores. Veio para o Brasil em 1935, adotando Blumenau como lar temporário. O seu objetivo aqui era empreender ações políticas e paramilitares para obter o apoio de líderes, empresas e formadores de opinião, visando à formação de um partido nazista alemão.

É pacífico afirmar que o velho Blitz alcançou grande sucesso em sua empreitada: Ensinou crianças descendentes de alemães a fazer a saudação nazista antes de entrar na sala de aula, “suicidou” autoridades que buscavam emperrar os interesses do Reich, comprou dezenas de servidores públicos e torturou e matou alguns espiões americanos que estavam se infiltrando no governo  Vargas.

O velho Blitz era bem instruído. Estudara em renomadas instituições, falava diversos idiomas e era obcecado pela causa e pelos ensinamentos nazistas. Para ele, era inaceitável que um alemão contaminasse sua linhagem com uma raça inferior. Porém, em 1937, durante visita ao Rio, descobriu a perfeita combinação entre um corpo com curvas acentuadas, gingado “ixperto” e uma ótima pitada de melanina. O velho Blitz não resistiu. Gostava da fruta. Fez o seu filho, Guilherme, com uma brasileira: Ana Clara, carioca safadinha.

Apaixonado pela Ana, resolveu morar com ela em uma casa comprada pelo seu partido. O velho ficaria instalado no Rio para participar do Levante Integralista, frustrado ataque ao Palácio Guanabara, em 1938. Apesar de não entender o motivo, Blitz havia recebido a ordem, aparentemente controversa, de assassinar o Getúlio. Entrou no combate convicto para cumprir sua tarefa, sem questionamentos e sem medo, como um grande soldado. Porém, sua missão não foi bem sucedida. Levou quatro tiros durante a insurgência. Escapou.

Pouco antes de a guerra estourar, o velho voltou para a Alemanha e lutou durante quase todo o período entre 1939 e 1945. O velho era osso duro: Levou oito tiros de fuzil na França, voou pelos ares duas vezes ao pisar em minas terrestres na campanha africana, foi capturado e torturado pelos russos em Stalingrado e os camaradas afirmam que ele teria sido atropelado acidentalmente por um Panzer, quando passeava bêbado, à noite, ao redor de seu acampamento. O velho Blitz nunca admitiu recordar deste acidente.

Voltou ilegalmente para o Brasil, em 1947, reencontrando a Ana e o Guilherme, que moravam em uma encosta que viria a ser parte de uma grande favela no Rio. Ana trabalhava em uma roça, que havia no morro. Vendia, em uma feira, as hortaliças cultivadas lá. Ganhava uma miséria. Já possuía quatro filhos.

Mesmo descobrindo que a Ana já tinha parido mais três moleques e que nenhum deles tinha pai registrado ou conhecido, o velho resolveu viver com ela. Inventaria um jeito de ganhar a vida. Em poucos dias, acabou inventando: Virou ajudante de pedreiro. O velho era inteligente e vigoroso. Um sobrevivente.

Sentia-se bem com a Ana. Pensou muito nela durante a guerra e ficou feliz ao encontrá-la. Chegou até mesmo a acreditar que a amava. Já havia ouvido falar sobre o amor. Seus companheiros moribundos falavam sobre o amor quando estavam prestes a sucumbir à pneumonia, em trincheiras frias e fedorentas. Os prisioneiros que fuzilou quase sempre faziam questão de declarar o amor por alguém, antes de morrer, como se suas últimas palavras tivessem o poder de viajar o mundo e agraciar o coração de suas esposas e filhos amados.

O amor sempre foi, para o velho Blitz, o último discurso de um homem. E ele queria muito possuir o direito de pronunciá-lo.

No entanto, Ana havia mergulhado no álcool, nas drogas e na amargura de uma vida repleta de escassez e solidão. Sua mente estava estilhaçada. Seu único pensamento era conseguir dinheiro para fomentar os seus vícios.

Depois da guerra, o velho Blitz nunca mais conseguiu dormir durante uma hora ininterrupta. Ouvia gritos, sentia a iminência de explosões, tinha pesadelos horríveis. Até mesmo o ruído de um grilo a quilômetros de distância era suficiente para acordá-lo. Ana não sabia, mas as noites do velho custavam a passar.

Uma certa madrugada, após apenas algumas semanas da sua chegada, o velho viu a Ana levantar-se da cama e, estranhamente, sair de casa. Olhou o relógio na parede. Três da manhã, em ponto. O velho foi até a janela da sala e contemplou, estarrecido, o mais triste cenário de devastação da eterna guerra que era a sua vida.

Ana conversava com três homens. Policiais. Um dos homens carregava um pacote. Ao ver o embrulho, Ana esticou acintosamente os braços para pegá-lo. Outro homem a segurou, de forma agressiva. Um deles abriu o envelope e exibiu o conteúdo. Dinheiro. Ela apontou para a casa. Os homens sacaram revólveres e se dirigiram para a porta da frente. O velho estava preparado. Sempre estava. Enganar a morte era seu maior talento e dizer adeus sem hesitação era seu “modus operandis”.

Na guerra, o velho Blitz aprendeu a elaborar mentalmente uma rota de fuga em qualquer lugar aonde chegasse. Era a primeira coisa que fazia ao acampar. Sabia que, sem qualquer ensaio, a sinfonia da destruição começaria a tocar. Dissonante e descompassada.

Quando as farpas de morte começassem a chover sobre as miseráveis vidas dos seus, tinha em mente exatamente o que precisava pegar e que caminho seguir. Não tentava salvar camaradas mutilados. Não carregava mais do que o essencial. Não olhava para trás. Assim ele sobreviveu.

A diferença é que, desta vez, além de uma pequena mochila que estava sempre pronta, levaria um ser humano. Um que não podia se cuidar sozinho. Não abandonaria sua linhagem. Mesmo que contaminada.

Carregou o Guilherme, abafando sua boca, e saiu furtivamente pela porta dos fundos, fechando-a cuidadosamente, em seguida.

Correu. Ouviu um dos homens gritar. Balas começaram a zunir ao seu redor. Correu. Primeiro beco à esquerda, segundo à direita, escadaria de barro, beco à esquerda, seguiu a trilha de um esgoto a céu aberto e saiu do morro. Escondeu-se em uma moita para respirar. Percebeu o pijama do Guilherme encharcado de sangue. Despiu o moleque. Procurou os furos. Ufa. Nenhum.  Abraçou o seu filho. Começou a sentir dor. Foram duas balas. Uma havia atravessado o seu ombro e a outra estava alojada entre suas costelas.

Já na avenida principal, arrombou uma caminhonete estacionada em frente a uma loja de materiais de construção, destravou o freio de mão e deixou que ela descesse um declive por alguns metros, até um local mais isolado. Colocou o Guilherme no carona, fez a ligação direta (cortesia dos conhecimentos adquiridos na guerra) e partiu.

O velho conhecia os acessos, as ruas, as rodovias. Estudar o ambiente onde estaria era prática consolidada de sua movimentada vida.

Esperto, resolveu ir morar no interior de Minas Gerais, pois a perseguição aos nazistas no Rio estava muito intensa. Instalou-se em Tumiritinga, cidadezinha humilde, no extremo leste do estado.

Em Tumiritinga, o velho vinha prosperando com a criação de porcos: “Fácil criarrrr porrrrcos neste porrrcaria de país!”. Vivia dizendo ironicamente ao Guilherme, com seu português precário.

Além de ter como passatempo ensinar coisas nazistas para o seu filho, o velho Blitz também mantinha um tímido convívio social, apenas com Tunico, coroa mineirinho que abatia e revendia a maior parte dos porcos do velho em seu açougue (“Açougue do Tunico”). O velho levava seus porcos na sexta-feira à tarde, e, depois de fechado o negócio, ia tomar pinga e jogar sinuca com o Tunico no bar do Tição, que ficava em frente ao açougue.

Na verdade, o velho Blitz estava interessado na Analice, filha do açougueiro. Analice era uma jovem de dezoito anos, cheia de sonhos, safadinha. Ela trabalhava no açougue do pai e, antes de conhecer o velho, não havia sequer beijado na boca. Tunico não deixava nem mesmo ela sair de casa sozinha: “Minha filha vai pá capitá ixtudar! Vai casá com um homi ixtruído, ixtudado. Num tem homi bão pá minha filha nessa terra aqui!”

Analice estava apaixonada pelo velho Blitz, o qual ainda era jovem, grandão, loirão e bonitão.

Tição, o dono do bar, era nascido na Bahia e não amava o velho Blitz: “Vixe! Lá vem aquele italiano de merda! Inda meto a mão na cara desse safado!”

Tunico até que simpatizava com o velho: “Ele num é italiano não, home. É das Eoropa. Ele me vende os pôrco barato. Ele gosta de nóis!”

Tição, na verdade, odiava o velho: “Oxente?! Ouvi ele te dizê que nordestino é tudo cabeça de coco e que os preto tinha é que queimá na fuguêra!”

O Tunico gostava mesmo do velho: “Dêêêxe de bobage, homi. É de brincadêra. O galego é um cabra bão!”

Mas o Tição queria arrumar uma encrenca: “Fique aí puxando o saco desse branquelo! Ele tá mermo é de olho na sua minina. Já vi duas vez ele aparecê aí no seu açôgue quando você num tá!”

Tunico agora queria o velho morto: “E É? AGORA QUE VOCÊ AVISA? VOU ARMAR UMA ARAPUCA PÁ ESSE MISERÁVE!”

Tarde demais. O velho Blitz já havia deitado e rolado – literalmente - com a garotinha. O velho era eficiente. Gostava da fruta.

Na manhã da segunda-feira da semana seguinte, Tunico saiu, como sempre fazia, fingindo que iria comprar gado em Linha do Vale, vilarejo próximo. Após algumas léguas na estrada, parou sua velha caminhonete e voltou de carona, por uma trilha escondida, no cavalo do Tição, que o esperava com uma espingarda a tiracolo:

- Tunico! Tu mira bem na caixa dos peito do safado!
- XÁ CUMIGO! SE AQUELE MISERÁVE TIVER BULINANO MINHA MININA, EU VÔ ARRANCÁ AS TRIPA DELE E DÁ PROS PÔRCO CUMÊ!

Chegaram sorrateiros pela porta do fundos. Analice ouviu os passos dos dois e falou baixinho pro velho:

- Corre, Blitz! Vem gente aí...

O velho vestiu às pressas sua camisa e correu, ainda abotoando as calças. Correu apenas porque sabia que era o combinado. O velho Blitz não sentiu medo. Como o perigo da aproximação era sempre pela entrada da frente, o velho correu pelos fundos. Ao abrir a porta, deu de cara com o Tunico e o Tição:

- Tá veno, Tunico? Eu te disse que esse fiduma égua tava aprontando com sua minina!
- EU TE MATO, MISERÁVI!!!

O velho Blitz abriu os braços, estufou o peito (as calças caíram) e falou convicto:

- Atirrrra, caipira! Atirrrra e mata! Ou eu mata você e cabeça de coco torrrrado!

Tunico tremia e soluçava. Os olhos sibilavam em lágrimas. Nunca havia matado um homem na vida. Analice chorava debaixo do balcão da máquina registradora, com as mãos nos ouvidos.

- Maaata esse discarado, Tunico! Mira nos peito. Como eu te insinei!!!
- Ê... Ê... Eu vô matá, homi! Péra que eu mato!!!

O dedo do Tunico nem chegava ao gatilho e a espingarda já estava prestes a cair, de tanto que tremia. O velho Blitz, percebendo a covardia do mineirinho, provocou:

- Dá arrrrma para cabeça de coco. Querrrr verrr se tem courage de atiraaarrrr! O prrrrobema deste espingarrrrda é que...

POW!!!

Tição havia tomado a espingarda da mão do Tunico e dado um tiro bem no peito do Blitz. O isqueiro de metal do velho estava no bolso esquerdo. O isqueiro era de zinco, muito duro, quase impenetrável.

O tiro atingiu o peito da direita.

O velho Blitz caiu de costas, dentro do estabelecimento. A bala atravessou e quebrou a janela da frente do açougue. Analice desmaiou. Tunico e Tição se aproximavam do corpo, curiosos e amedrontados, quando, de repente, o velho se levantou, resmungando:

- O prrrrobema deste espingarrrrda é que dá só um tirrrro e tem que recarrregarrr!

Tição livrou-se da arma, berrou “VIXE MARIA!!!!” e partiu em disparada. Tunico já estava a uns cem metros de distância. O velho Blitz foi atrás, mas se embaraçou nas calças que estavam enganchadas nos seus pés e desabou no chão. Resolveu desistir da perseguição:

- Eu vai emborrrra desta lugarrrr. Até a guerrrra é melhorrr do que este terrrra infame.

O Velho saiu andando na direção da sua casa, deixando um rastro de sangue pelo caminho. Não sentia dor. Não sentia tontura, por conta do sangue que perdia. Mas, pela primeira vez, sentiu vontade de morrer. Depois de ter escapado de tantas pessoas que tentaram tirar sua vida, durante toda ela, estava convencido de que apenas ele mesmo poderia fazê-lo. [continua]

Um comentário:

  1. No aguardo da continuação...a história é massa...tem gostinho de quero mais...

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